Por Seulecia Fontes (Reportagem Especial)
“Existem vários Brasis e poucos conhecem o Brasil profundo”. As palavras do indigenista Fernando Schiavini ecoam no acampamento montado na aldeia Kraho Manoel Alves, a 8 km de Itacajá e cerca de 300 km da Capital do Tocan-tins, Palmas. O comentário surge quando um indígena mostra vídeo sobre a invasão da aldeia de Waiãpi, em Pedra Branca do Amapari, Amapá, e o assassinato de uma liderança indígena.
Em tempos de fake news, corremos para confirmar se a invasão ocorreu de fato. Sim, é verdade. Enquanto vivemos a experiência de conviver pacificamente em uma comunidade indígena tocantinense, outra localizada na região amazônica passa por momentos de tensão.
Estamos na segunda expedição turística em território Krahô promovida pela empresa Tekoá Turismo Sustentável, dos empresários Fernanda Carasilo e Marcos Luz. Acompanho quatro mulheres de São Paulo – Capital e Jundiaí -, três delas com vasta experiência em viagens nacionais e internacionais, mas que neste momento estão em busca de uma experiência mais profunda, que supere os limites do turismo tradicional.
Ao longo de cinco dias dormimos em barracas e acordamos com o canto dos galos, fazemos trilhas com indígenas, ouvimos suas histórias, questionamos diferenças, experimentamos pratos típicos, participamos de feira de artesanato, nos encantamos com a alegria das crianças e a sabedoria dos anciãos.
Aprendizados
Saímos de Palmas pela manhã e almoçamos em Itacajá. Alguns quilômetros depois, somos recepcionados por Michel Hãjhã, que nos convida a fazer o percurso restante por uma trilha utilizada pelos indígenas. Vou com a professora universitária Lívia Brandão e a administradora pública Carla Vila. Ao longo de 1h30, Michel revela alguns costumes da etnia, fala sobre sua família, responde nossas perguntas, ensina algumas palavras, em especial cumprimentos.
Na aldeia (Kri), que tem forma circular, onde as casas rodeiam uma grande praça, nos encontramos com a turma que seguiu de carro e vamos para o Ká, centro da grande praça, onde todas as atividades sociais ocorrem. Somos recepcionadas pelo cacique Roberto Krahô Cahxêt, o vice-cacique José Edilson Cuxy e vários outros homens. Roberto fala da importância do projeto para a aldeia, mas reitera que o lucro não é o único objetivo. “O poré (dinheiro) destrói nossa união.”
Nossas barracas são montadas no quintal de Getúlio Orlando Kruwakraj Krahô, uma liderança que já correu o mundo para defender a cultura do seu povo, e começamos a perceber o modo de vida local. A curiosidade é mútua: mulheres e crianças nos observam, e nos aproximamos dos menos tímidos. Os banheiros esbanjam limpeza e o cardápio farto é servido pelo paisagista e cozinheiro Juarez Luz, levado do distrito de Taquaruçu, em Palmas, para a aldeia. Mas também experimentamos pratos tradicionais, como o paparuto e carne de caça (veado e tamanduá!) com feijão guandu. E acredite, é saboroso!
Animado com a receptividade, no penúltimo dia, Juarez realiza uma oficina para ensinar as mulheres da aldeia a fazer pão de queijo, bolo de mandioca com queijo e rosca. Juarez é auxiliado por Gelma Kôjkha. O seu marido, Joel Marcos Cuxy, integra a equipe e faz as fotos e vídeos. Seu sonho é fazer um curso na área.
A psicanalista Maria Olímpia França tem 82 anos, mas não se importa de dormir em barraca e realizar quase todas as atividades sem se queixar.
“As crianças são educadas, não há brigas, não vemos mães brigando com seus filhos”, observa encantada. Ela está com sua secretária, Adriana Ervolino, que aproveita os momentos livres para saber mais sobre o modo de vida local. Impossível deixar de reparar a quantidade de casamentos entre adolescentes, mães muito jovens e o domínio masculino. Por outro lado, são os homens que deixam suas famílias para se integrarem às das esposas.
São dias intensos. Visitamos cachoeira, participamos de roda de conversa em torno de fogueira, conversamos sobre o modo de vida local, sua história, desafios. Getúlio quer aproveitar a estrutura erguida para os turistas para implantar a Escola Tradicional (Tyrkre), visando o repasse das tradições indígenas, paralelamente à escola pública estadual.
“Não somos contra a escola Kupen (não indígena), ela nos dá preparo, mas não podemos esquece nossas tradições”, pontua José Edilson.
Aproveito para perguntar sobre a presença de religiões cristãs, e sou surpreendida por Antônio Pocrok. Ele explica que seu interesse por ler a Bíblia e conhecer outro dogma não condiciona ao abandono de suas crenças originais.
O vice-cacique, revela que a introdução do turismo de vivência estimulou a retomada de algumas festas que estavam em desuso. É o caso da festa do Cacot, que acompanhamos desde a derrubada do buriti para fazer as toras usadas nas corridas tradicionais, até a cerimônia noturna, quando os homens passam a noite no Ká entoando cantos em torno de uma fogueira e atirando flechas com as pontas protegidas uns nos outros.
Ainda temos a oportunidade de subir o rio Manoel Alves de voadeira (barco a motor) para conhecer outra realidade. Juntamente com Michel Hãjhã e outro jovem, sigo para a aldeia Barreiras com Carla, que escolheu esta viagem para se despedir do País, antes de um período de estudos na Inglaterra. Lá conversamos com o cacique Aluísio Krahô, que também é professor da escola estadual local. A aldeia é bem menor e percebemos que há muito o que se fazer por nossos povos indígenas.
O território conhecido como Kraolândia fica localizado entre os municípios de Goiatins e Itacajá, numa área com 302 mil hectares demarcados. São 3.500 indígenas habitando em 32 aldeias. E quem defende a redução dessas áreas deveria saber que são redutos de preservação da fauna e da flora.
Ao presenciarmos tanta beleza e vivenciarmos essa experiência com indígenas em uma situação de sustentabilidade, comentamos que poucos vão se propor a esta experiência única e visceral.
O projeto
Para chegar a este formato foram necessários dois anos de preparação, com muitos encontros com as lideranças da aldeia, para saber como eles gostariam de trabalhar, treinamento que incluiu formação de mão-de-obra local e correções na forma de abordagem aos visitantes, vivências-piloto com agências de São Paulo e autoridades tocantinenses e da Fundação Nacional do Índio (Funai).
“O turismo nos Krahô é algo perseguido há muito tempo; eles são bons anfitriões, são universalistas, o que estamos tentando fazer é levar profissionalismo, mas com muito respeito”, explica Fernando, que soma 40 anos de trabalhos prestados junto aos indígenas, 32 deles com os Krahô, lembrando que era preciso convergir para um formato que não alterasse o modo de vida indígena. Tanto que uma das decisões é receber visitas somente durante a realização de festas tradicionais.
“Queremos mostrar os rituais reais, para manter a originalidade”, completa. “Nós temos um propósito além do mercado, de promover o que chamamos de ‘troca justa’, após séculos de exploração. Além disso, esse projeto é uma vitrine internacional”, comemora Marcos Luz.
*A jornalista viajou a convite da Tekoá Turismo Sustentável.