Pandemia provoca “cataclisma” na cultura do Brasil e artistas passam fome

Por Joana Oliveira
A pandemia do novo coronavírus atingiu em cheio a indústria cultural brasileira, que, em grande parte, depende de plateias e aglomerações em espaços fechados, e que já arrastava uma crise por cortes orçamentários e falta de políticas públicas. O setor, que emprega cinco milhões de pessoas e movimenta 170 bilhões de reais por ano,  de acordo com o extinto Ministério da Cultura, enfrenta o fechamento de aparelhos culturais, demissões e a fome de artistas que não têm como se manter, enquanto o Governo federal, que já o havia rebaixado à categoria de Secretaria Especial, promove um troca-troca de lideranças que não deixam um legado de políticas efetivas. É o caso de Regina Duarte, que deixou a pasta no dia 20 de maio,  sem responder à pressão de artistas por medidas públicas para aliviar o impacto da crise.
Para amenizar a crise, Câmara dos Deputados aprovou ajuda emergencial de 3,6 bilhões de reais para a Cultura, mas texto ainda tem que ser votado pelo Senado. Foto: divulgação

“A pandemia gerou um cataclisma para os trabalhadores da Cultura”, avalia Leandro Valiati, especialista em economia da cultura da UFRGS e da Queen Mary University de Londres. Nos dias 21 e 22 de maio, mais de 100 pessoas foram demitidas em redes de museus e teatros do Rio de Janeiro e São Paulo, como o Sesi-SP, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e o Museu de Arte Moderna do Rio.

Na terça-feira (27/05), a Câmara dos Deputados aprovou uma ajuda de três bilhões de reais ao setor cultural durante a pandemia. O dinheiro, proveniente do Fundo Nacional de Cultura, será repassado aos estados, municípios e ao Distrito Federal, que destinarão os recursos para a manutenção de espaços, editais, prêmios e chamadas públicas. O texto, um substituto da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) ao Projeto de Lei 1075/20, da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), prevê um auxílio de 600 reais específico para trabalhadores da área cultural e segue para votação no Senado.

Enquanto a ajuda pública não chega, os artistas se organizam como podem para amenizar a situação. Em Salvador, o ator e produtor teatral Lelo Filho, um dos criadores da Cia. Baiana de Patifaria —que sempre viveu apenas da bilheteria—, uniu-se a outros sete colegas para criar Plano de Crise para as Artes Cênicas da Bahia e organizar audiências virtuais com deputados e senadores para cobrar medidas. Somente no grupo de teatro de Filho, oito pessoas estão sem renda. “Não conheço um artista de teatro que tenha uma reserva para ficar dois meses sem renda. Temos colegas artistas que estão passando fome, outros estão sendo despejados. Criamos uma vaquinha virtual para receber doações e cestas básicas para eles”, conta.

Para ter acesso ao benefício federal, caso ele seja, de fato, aprovado, os artistas terão de ter um cadastro junto a algum órgão cultural. “O Governo quer esse cadastro, que é necessário, mas não é o urgente agora. Antes de se cadastrar, o artista precisa comer, precisa ter um teto para morar. E os artistas de rua, que fazem teatro popular nos ônibus, nos metrôs, e que mal têm um celular para falar com a família? Como eles vão fazer esse cadastro?”, pondera Filho. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 44% dos trabalhadores da cultura atuam de forma autônoma e sem renda fixa.

“O Governo tem que garantir que o apoio público chegue a todos os profissionais, inclusive os informais. O grande desafio da política pública é justamente apoiar artistas e produtores culturais independentes”, afirma Leandro Valiati.

Lelo Filho lembra que a cadeia produtiva do setor é enorme e engloba também trabalhadores como camareiras, técnicos de som, técnicos de iluminação, bilheteiros e outros. “Essa cadeia envolve até o baleiro e o pipoqueiro, que vendem mais na porta do teatro de rua quando tem espetáculo em cartaz”, comenta. Para ele, o mais desesperador é a falta de “perspectiva” para a retomada econômica dessa área. “Daqui a pouco, vão flexibilizar o isolamento social e reabir lojas, shoppings, mas teatros, cinemas, casas de show, não”.

Salvar a cultura popular

Valiati acredita que as atividades culturais são precisamente as que vão liderar a retomada econômica pós-pandemia. Segundo ele, o aumento da tendência do streaming  por exemplo, abre portas para o consumo de mais produções brasileiras em todo o mundo, eliminando os custos do entorno físico. O especialista alerta, no entanto, que isso também representa um risco para a cultura popular .

“Se não garantirmos sua sobrevivência, quando tudo está migrando para o digital, vamos perder parte de nossa riqueza cultural. A política pública tem que dar conta dessa exclusão digital. Todo o fluxo do turismo que ajudava a sustentar parte da cultura popular foi parado. Por isso, são necessárias políticas para garantir um equilíbrio no mercado. Pensar, por exemplo, em como taxar as plataformas de streaming para financiar a cultura popular”, propõe.

Perguntado sobre a tendência de lives —shows online que cantores e bandas têm feito em parceria com diversas marcas durante a quarentena—, Valiati diz que ainda faltam formas de monetização desse modelo e que a a lógica de patrocínio só funciona para artistas já consolidados, com grande número de seguidores nas redes sociais.

Funcionaria para as artes cênicas ou outras atividades? Lelo Filho duvida. “Acho lindo quando dizem que o artista tem que se reinventar, mas, primeiro, o artista tem que fazer conta para sobreviver. O povo acha que artista vive de luz. E produzir em casa vai ser tudo, menos teatro. Fora que a gente concorre com live de Ivete, super produzida, com luz super boa, e com a Netflix, né. O diferencial do teatro é justamente a emoção ao vivo, é você gargalhar de doer a bochecha ou sair arrepiado por um drama”, lamenta.

Enquanto a solução não chega, mais coletivos se organizam para sobreviver, em todos os sentidos, ao novo coronavírus. A pianista e compositora Júlia Tygel criou A Nossa Música, projeto em que as podem encomendar uma música instrumental ou canção, a partir de um mote, que será composta e depois executada através de um vídeo de aproximadamente um minuto, por artistas que fazem parte de um coletivo formado para a iniciativa. Já o diretor de fotografia Azul Serra, ao saber que amigos do audiovisual passam por dificuldades, criou a ONG Plano Sequência, onde é possível comprar imagens autorais a partir de 250 reais. Como diz Leandro Valiati, “a ciência e a cultura são o que vão salvar a gente”. *Fonte: El País.

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