‘Eu só faço o que quero’, de Fred Coelho, traça trajetória do compositor que participou de momentos fundamentais da vida cultural brasileira, encarnando um personagem que se fez muitos (sambista, político, maldito, malandro, “faquir da dor”) para dar conta de sua criação.
Na introdução de Jards Macalé — Eu só faço o que quero (Numa Editora), o autor Fred Coelho explica que o alvo da investigação do livro é menos o cidadão Jards Anet da Silva que o Macalé, “o personagem inventado por Jards Anet da Silva”. O compositor carioca, que já se definiu como “vários Macalés que formam um Jards indivisível”, reconhece a separação e descreve as duas figuras:
— Macalé é um cara bacana, amigo de todo mundo, vive tendo ideias estrambólicas, bebe de vez em quando caipiroska de maracujá e mojito, grava discos, faz shows, agrega gente… — explica o artista, por telefone, de Penedo, no sul do Estado do Rio de Janeiro, onde está refugiado desde o início da pandemia do novo coronavírus. — E Macalé fuma muita maconha, a herança que João Gilberto lhe deixou: maconha com juízo, maconha sem prejuízo.
E Jards Anet da Silva?
— Esse fica em casa, seja em Penedo, no Leme (seu endereço no Rio hoje) ou no Jardim Botânico (onde morou por décadas). Fica tocando seu violão, quieto, fazendo suas musiquinhas, passa o dia inteiro pensando que “as coisas estão no mundo só que eu preciso aprender” — diz, citando Paulinho da Viola.
— A única semelhança entre Anet e Macalé é que os dois fumam maconha. Mas quase como uma religião, para aguçar a sensibilidade, sobretudo musical. Nem Anet nem Macalé usam maconha para compor ou se apresentar. Aí não entra nada. A própria música é o barato. A música é o sagrado, o barato da lucidez absoluta.
A fala de Jards carrega o misto de humor, provocação, sinceridade e fabulação que atravessa as 500 páginas do livro que será lançado no próximo dia 11. Até por isso, o autor prefere chamá-lo de ensaio biográfico, em vez de simplesmente biografia. “Não sigo o caminho clássico da biografia, de entrevistar muitos, confrontar versões, chegar a uma verdade. Até por meu perfil mais acadêmico, escolhi traçar um retrato desse personagem como um ensaio biográfico. Fiz muitas entrevistas com Jards e algumas poucas pessoas muito próximas a ele, como Xico Chaves e Tato Taborda. E também pesquisei em reportagens, entrevistas, como Macalé foi sendo construído.”
Coelho parte da cena de Macalé numa barca sob o vão central da Ponte Rio-Niterói, em 1974, no evento de lançamento de seu disco A Aprender a nadar (lançamento literal, com LPs sendo arremessados nas águas da Baía de Guanabara) para desenrolar seu personagem. A ponte —obra que foi um dos símbolos da imagem de “Brasil grande” projetada pela ditadura militar— servindo de fundo para uma estratégia vanguardista de divulgação de um artista que por mil motivos (estéticos, políticos) representava o oposto do regime. “Mas o importante é sob, e não sobre, o vão central da ponte, estarmos vivendo este momento em todas as suas possibilidades de realização e criação”, declarou Macalé, na ocasião.
Sob, e não sobre — uma marca da trajetória de Macalé.
De um lado, por sua criação que desafia formas estabelecidas, com a invisibilidade do malandro que emerge onde não é esperado num instante ele acompanha discretamente Nora Ney ao violão, no instante seguinte berra a radicalidade estética de Gotham City sob vaias no Festival Internacional da Canção.
De outro, pelas dificuldades mercadológicas que enfrentou, um apagamento explicado tanto pelo conservadorismo do mercado quanto por seu comportamento frente a ele, lançando ofensivas contra figuras como Caetano Veloso e Roberto Menescal (na época diretor da Polygram, hoje Universal). “Complicado”, “experimental demais”, “maluco”, “maldito”. Sob, e não sobre, “em todas as suas possibilidades de realização e criação”.
— Não faria nada diferente — diz, convicto, Macalé. — A herança maior que meu pai me deixou foi a certeza de que você não pode abaixar sua cabeça pra ninguém.
Isso inclui “sair na porrada”, com o capitão Ribamar Zamith, comandante de sua companhia quando ele estudava no Colégio Militar. O episódio, narrado no livro, é lembrado até hoje por Jards entre a fúria e o orgulho.
— Zanith, que depois virou segundo maior torturador listado pelo Tortura Nunca Mais, atrás apenas daquele ídolo do Bolsonaro ( Carlos Alberto Brilhante Ustra), chamou minha mãe para reclamar do meu comportamento no colégio. Botou ela na sala dele e me deixou do lado de fora, na porta. Disse: “Sentido!”. Quando fiz posição de sentido ele bateu a porta a dois dedos da minha cara. Quando abriu, minha mãe chorava convulsivamente: “Olha o que você fez com a sua mãe”. Xinguei ele, que disse: “Se não estivéssemos fardados eu acabava com você”. Respondi: “Não seja por isso”. Fiquei nu e parti pra cima dele.
Jards partiu pra cima de outras brigas nobres, lembra o livro. Esteve na linha de frente do debate pela justiça na distribuição de direitos autorais. Foi um dos fundadores da Sombras, sociedade arrecadadora independente, gerida pelos próprios artistas. Também comandou o show-protesto Banquete dos mendigos, de 1973, em celebração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O episódio é detalhado num dos capítulos do livro, incluindo as estratégias para driblar a repressão — como ludibriar agentes do DOPS de que o gravador que registrava o espetáculo era um “aparelho de efeitos para o som no palco”.
“Um dos motivos centrais pelo qual me lancei no projeto do livro foi por me incomodar com o papel totalmente lateral e irrisório de Jards nas discussões sobre o período”, conta o autor do ensaio biográfico. “Ele não aparece nos livros da época que pensam música popular, não estava por exemplo nos debates da Revista Civilização Brasileira [que reunia as ideias dos intelectuais da academia e do cenário cultural], a coluna que publicou na Folha [no início da década de 1980] estava esquecida… Não é um resgate, até porque ele não precisa disso, segue vivo, produzindo muito e sendo reconhecido. Mas queria que as pessoas lessem o livro e entendessem sua importância na história da cultura brasileira”, afirma Coelho.
Pela abrangência de seu alcance em momentos cruciais do Brasil desde meados do século passado, a trajetória traçada no livro corrobora as palavras de Fred. De avó libertária e cosmopolita e pai militar, Jards nasceu na Tijuca e cresceu na Ipanema dos anos 1950, que reunia intelectuais e pescadores, fermentando o que seria a bossa nova. Sua música passa pela formação de violão erudito, inclusive como aluno de Guerra-Peixe; pelas “aulas” atuando como copista (função de quem copiava as partituras pros músicos) da Orquestra Tabajara; pela participação em espetáculos históricos como Opinião e Arena conta Zumbi; pela direção musical de shows de Bethânia e Gal Costa ; pelas experiências de Transa, disco de Caetano gravado em Londres no qual ele foi peça central; pelas trilhas sonoras de filmes como Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos; pela epifania que teve ao ver Nelson Cavaquinho tocando no Baixo Leblon:
— Eu queria ser músico erudito, concertista, e estava estudando ferozmente pra isso — lembra Macalé. — Aí um dia, no Baixo Leblon, vejo o Cyro Monteiro com Nelson Cavaquinho. Paro, a gente conversa, o Cyro vira pro Nelson e diz: “Toca aquela pro Macalé”. Ele começa: “Tire o seu sorriso do caminho…” (canta). Bicho, aquele violão, aquela rusticidade. “Ah, se eu misturar meu violão clássico com esse violão de doido, vai ser o melhor pra mim”. Foi o que eu fiz.
Na casa de João Gilberto, anos depois, recebeu seu diploma:
— Ele estava lavando a louça, eu na sala. “Toca uma musiquinha pra gente, Macala”. Peguei o violão,estava tocando uma música de Caymmi. De repente, botei um acorde que você tem que saber a hora de usar, achei que caberia ali. De costas, da cozinha. Ele falou só: “hã?”. Aí eu descobri: eu podia também. Para bom entendedor, um “hã” de João Gilberto basta.
Além de João Gilberto, Macalé trocou com personagens tão diversos como Glauber Rocha, Turíbio Santos, Paulinho da Viola, Grande Otelo, Waly Salomão e Gilberto Gil. Desde seu surgimento, foi entendido ora como integrante do “grupo baiano”, ora como sambista, pós-tropicalista (sem ter participado de nenhum momento da Tropicália), “faquir da dor” (na fase da “morbeza romântica”, marcada por canções como Vapor barato e Anjo exterminado), malandro sucessor de Moreira da Silva. Hoje é Besta fera (nome de seu mais recente disco), parceiro de uma nova geração, de nomes como Romulo Fróes, Kiko Dinucci e Ava Rocha (filha de seu amigo e personagem muito presente no livro Glauber Rocha).
— Essa geração de agora tem tanto talento quanto aquela, só as linguagens que, graças a Deus, são diferentes. E está correndo tanto perigo quanto aquela, com consciência disso. Cuidado, há um Bolsonaro na porta principal, o verdadeiro morcego. Há um abismo na porta principal — afirma Macalé, citando o verso de sua Gotham City (“Cuidado, há um morcego na porta principal”).
“Alguém demasiado humano”
Nem heroica nem trágica, a trajetória de Macalé é, nas palavras de Coelho, a de alguém “demasiado humano, sensível a tudo que o cercava, sobretudo à situação do Brasil”. O período mais delicado da escrita do livro, conta o autor, foi o referente à década de 1980, marcado por crises (financeiras, psicológicas, artísticas) que o levaram à beira do suicídio mais de uma vez. Na primeira, foi salvo por João Gilberto, numa cena linda e simbolicamente enorme, no qual o baiano toca No rancho fundo até trazer Macalé de volta à serenidade — a cena é lembrada no documentário Um morcego na porta principal (2009), de João Pimentel e Marco Abujamra. Na segunda vez, quem o salva é seu parceiro Xico Chaves — história pela primeira vez contada em detalhes no livro.
“Quando Xico arrombou a porta de Macalé, o gás estava aberto”, conta Fred. “Os anos 1980 foram muito difíceis pra Jards. Não conseguia emplacar projetos, não se adaptou àquele momento do Rock Brasil. Além disso, amigos como Glauber e Hélio Oiticica morreram no início da década. Ele ficou como que sozinho para segurar essa leitura de Brasil alucinado, porque eles eram seus companheiros nessa tradição do delírio. É nessa época que o presidente Figueiredo é internado, e Macalé vai ao hospital, com uma sacola de mercado e um copo de cerveja na mão, e exige vê-lo para saber de sua saúde”, conta o biógrafo. “Naquele momento Jards Macalé acreditava que todas as fronteiras entre arte, vida, ativismo e delírio precisavam ser rompidas em prol de atitudes que demarcassem algum tipo de ação performática e polêmica”, escreve no livro.
A primeira reação de Jards quando Coelho disse que queria contar sua história foi negativa, meio a sério meio de gaiatice: “Eu tô vivo!”. Findo o trabalho, Macalé brinca que vai ter um “segundo tomo”, para o qual já tem um subtítulo: “O Grammy me deve um Grammy” (em referência ao fato de, em 2019, ter perdido o prêmio de Melhor Álbum de MPB para Ok ok ok, de Gilberto Gil):
— Amo Gil, mas o prêmio era pra ter sido do Besta fera, muito mais porrada.
Um segundo tomo daria conta das histórias que não entraram no primeiro, e das que ainda estão por vir. Macalé, afinal, “tá vivo”. Além de sua presença no documentário em produção London London, da diretora (e sua mulher) Rejane Zilles, sobre a Londres do início dos anos 1970 vivida por personagens como ele, Caetano, Gil e Jorge Mautner, há três projetos de disco no forno. O primeiro, dedicado a canções de Zé Ketti, foi gravado em Nova York com o pandeirista Sergio Krakowski. Outro, que será registrado em janeiro pela gravadora Rocinante, trará ele e João Donato compondo e tocando juntos.
— E ainda tem meu primeiro disco instrumental, um sonho que tenho desde o início da carreira, e que finalmente será feito, pela (gravadora) Atração — adianta Macalé, antes de se despedir usando a frase que ouviu de Glauber Rocha há três décadas e que repete desde então: — Não diga que me viu, para sua segurança pessoal.
*Fonte: El País
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