A socióloga Loreley Garcia, de 56 anos, já viajou por quase todo o mundo e morou em três países além do Brasil – Israel, Alemanha e Estados Unidos. Circulou sozinha por vários motivos: trabalho, passeio e estudos.
Para ela, que é professora na Universidade Federal da Paraíba e especialista em gênero e sexualidade, existem padrões culturais próprios a cada país ou região. Conhecê-los, afirma, pode fazer com que mulheres viajantes se sintam mais seguras e não sejam desrespeitadas durante uma viagem.
Da mesma forma, outras viajantes solitárias apontam que os padrões culturais do país de origem também interferem na experiência de viagem.
Do medo à empatia, passando por possíveis gafes ou surpresas positivas, o encontro entre diferentes culturas pode resultar em sensações distintas.
“Acho que temos que saber respeitar os códigos e costumes dos lugares, para não nos metermos em problemas e estarmos abertas à noção de que raramente o mundo é do jeito que achamos”, diz a escritora Gaía Passarelli, de 40 anos, autora do livro de viagens Mas você vai sozinha? (Globo Livros).
Passarelli alerta sobre a importância de a viajante se informar, antes da partida, sobre a cultura local, principalmente costumes de gênero.
Mas quais características ou hábitos locais podem interferir na experiência de mulheres que se aventuram sozinhas em viagens?
1. Independência feminina
No segundo semestre de 2016, a pesquisadora Hannah Maruci, de 26 anos, fazia um intercâmbio do seu mestrado em Veneza, na Itália, quando decidiu seguir sozinha para a Romênia.
A viagem foi o estopim para que ela percebesse um “preconceito” entre parte dos italianos em relação a países que estão mais ao sudeste e leste da Europa.
A percepção quase a fez repensar a viagem. “Acharam estranho eu viajar para a Romênia. Disseram que era um lugar superperigoso para uma mulher ir sozinha”, conta.
Mas a pesquisadora resolveu embarcar e não se arrependeu. “Também na Romênia estranharam que estivesse viajando sozinha, não entendem a razão, mas ainda assim me senti bem tranquila lá, mais do que no Brasil.”
Já a escritora Passarelli conta que, por ter começado a viajar sem companhia muito cedo – aos 16 anos, para a Europa -, sempre se sentiu segura nas viagens que fez pelos cinco continentes.
“Em cidades mais turísticas, a mulher viajando sozinha é algo normal, não tem esse espanto, esse ‘Oh, ela está sozinha!'”, diz. “Mas também estive em países (menos visitados) da África e na Ásia e sempre me senti bem recebida”, completa.
Passarelli diz que países que se aproximam de nossa língua e cultura podem ser uma boa opção para brasileiras que queiram viajar sozinhas pela primeira vez.
“Para uma brasileira insegura e pensando numa primeira viagem sozinha para longe de casa, lugares como Portugal são ideais: há a facilidade da língua, as pessoas são adoráveis e uma mulher viajando sozinha não é alvo de comentários ou curiosidade”, avalia.
2. Assédio
Hannah Maruci, que visitou a Romênia, conta que não sofreu assédio no país. Mas o mesmo não aconteceu na Itália, onde se sentiu desconfortável em alguns momentos.
“É um assédio que não chega a ser perigoso, mas é desagradável, principalmente ao sul da Itália”, aponta.
A professora Loreley concorda com Hannah que na Itália, além de Grécia e França, a mulher pode ser assediada na rua e em bares de maneira semelhante às abordagens masculinas que acontecem no Brasil.
“Mas no norte da Europa, Suécia ou Dinamarca não te abordam. Na Alemanha também há pouco contato, são muito contidos com desconhecidos”, relata.
No outro lado do Atlântico, quando morou nos Estados Unidos, a jornalista Maria Carolina Oliveira, de 27 anos, conta ter ouvido frases como “Samba para eu ver” e “Seu corpo é ‘hot’ (quente)”.
“Senti que dizer um ‘não’ a um homem americano é algo mais bem aceito do que no Brasil, pelo menos na minha experiência”, diz Oliveira.
Mas, na Índia, onde costumes religiosos impõem às mulheres um comportamento distinto do Brasil e onde há casos de estupros coletivos de grande repercussão, a escritora Gaía conta que se sentiu acolhida e segura com as mulheres locais.
“No meu primeiro dia no país, peguei ônibus em Thiruvananthapuram e me sentei do lado errado, sem saber que tinha lugar definido para homens e para mulheres no transporte”, conta.
“Na mesma hora, uma mulher se levantou de onde estava e se sentou ao meu lado, foi conversando comigo, desceu no ponto de ônibus que eu tinha que descer e me levou até onde eu tinha que ir.”
O mesmo ocorreu no Vietnã com as portuguesas Joana Genésio, de 24 anos, e Miriam Maria, de 32 anos.
“As mulheres lá têm o mesmo papel na sociedade que os homens desde o tempo da guerra, momento em que elas tiveram de liderar as famílias enquanto os maridos defendiam o país”, conta Joana.
“Os homens do país são muito respeitadores. Não procuram o contato físico, podem até elogiar, dizer que somos bonitas, mas não invadem nosso espaço, e isso é ótimo quando se viaja sozinha”, afirma Miriam.
3. Bebida alcoólica
Todas as turistas consultadas relataram que a relação das pessoas com bebidas alcoólicas pode ser muito diferente de país para país.
Nos Estados Unidos, México e em alguns países europeus e asiáticos, é proibido beber nas ruas, por exemplo.
Nos EUA, a jornalista Maria Carolina Oliveira conta que o que mais chamou a sua atenção não foi o assédio nas ruas, mas a relação que os americanos estabelecem entre mulheres e o pagamento de bebidas em festas.
“Uma vez fui a Las Vegas com oito amigas. Entramos em todas as baladas. Em nenhuma nos cobraram entrada e ganhamos bebida de graça dos próprios cassinos para ficar ‘nos divertindo’ nas máquinas, mas sabíamos que o marketing desses lugares era atrair mulheres para chamar mais clientes”, lembra.
Apesar desse comportamento de “atrair mulheres com bebidas” e do assédio com as brasileiras, Oliveira conta que não se sentia insegura de frequentar festas ou de caminhar nas ruas.
“Percebi que é cultural lá, mas com o tempo vi que não significa que o homem queira algo em troca necessariamente, é só de praxe dos lugares”, opina a jornalista.
A relação dos italianos com a bebida também marcou a viagem de Hannah.
“Quando você sai ou encontra um amigo na Itália, fica subentendido que ele irá pagar sua bebida, mesmo que não tenha nada a ver com um encontro amoroso ou de interesse sexual.”
Esse costume, segundo Hannah, vem de todos: mais novos e mais velhos, conservadores e tradicionais. “É um hábito mesmo de que, só pelo fato de ele ser homem, é ele quem paga a bebida às mulheres que estiverem com ele”, conta.
“A primeira vez que um amigo me ofereceu bebida eu rejeitei, e ele disse que não era uma coisa ruim, que ele estava apenas me convidando. E me explicou que não pagaria bebida à noite toda, mas no mínimo a primeira rodada”, lembra a pesquisadora.
Gaía Passarelli conta que o extremo sul da Índia, onde a maioria é muçulmana, a venda de álcool não é permitida nas ruas, somente em hotéis e para turistas.
Sabendo desse costume, a escritora, em uma viagem ao Estado de Tamil Nadu, pediu uma cerveja quando chegou ao seu hotel. “Então, uns homens me perseguiram até meu quarto gritando comigo porque eu estava bebendo cerveja”, lembra.
4. Religião e violência
“Na Índia, por exemplo, eu usei pano pra cobrir a cabeça, assim como na Itália eu cubro os ombros para entrar na igreja ou no Japão eu tiro o sapato para entrar em uma casa”, conta Passarelli.
Em setembro de 2016, a portuguesa Joana Genésio fez uma viagem pela Ásia. A viajante conta que não se sentiu com medo nas ruas, mas em países de maioria muçulmana, como Indonésia e Malásia, era comum mentir e dizer que estava acompanhada de um marido ou namorado.
A também portuguesa Miriam Maria fez uma viagem pelo continente e concorda que a religião de alguns países interfere no modo como seus habitantes veem as mulheres viajantes do Ocidente.
“Marrocos e Índia são países em que há uma grande abordagem sexual de mulheres viajantes, porque somos vistas como as levianas”, conta.
Para Loreley, especialista em gênero e sexualidade, “é flagrante como o tratamento às mulheres é bem diferente nos países onde houve fortes conquistas do movimento feminista”.
“Vindo de um país como o Brasil, por exemplo, é difícil desenraizar os medos típicos de sociedades violentas”, explica Loreley, contando que sua própria percepção de insegurança interferiu em suas viagens.
A incomum sensação de tranquilidade na Alemanha surpreendeu a socióloga. “Percebi que todos se sentiam tranquilos para andar nas ruas, a pé, tarde da noite. Mas eu não, acelerava o passo quando estava sozinha”, lembra.
O estranhamento se repetiu nos Estados Unidos.
“Morei em uma pequena cidade do Oregon, onde as casas sequer eram trancadas, mas não me sentia confortável para subir a montanha em que vivia depois do escurecer. Os amigos me deram uma lanterna!”