Albenísio Fonseca*
As tigresas estão à solta. O olhar carregado da mais sutil sedução e os lábios pintados com luminosidade de néon, elas atravessam as vitrines da cidade.
Cabelos esvoaçantes sob o sol do anúncio do verão, a provocação caminha com elas. Unhas de gata, sem nenhuma ameaça, o tempo parece estar sob o seu inteiro dispor. O imaginário da mulher contemporânea não envolve nenhum caráter enigmático, está exposto, mas não é tão fácil decifrá-lo.
Já não faz o tipo dona-de-casa ou guerrilheira. Antes, é uma profissional que a cada dia vem ocupando mais e mais espaços na sociedade. Assumindo posições de mando, militante de causas sociais, ela surpreende em cada gesto.
De macacão, botas e capacete, biquíni, capa de revistas, urbanizada, tanto mais, objeto de estudo do IBGE, mães e filhas do prét-à-porter desses shopping times, 51% da população mundial, habitantes dos sonhos das metrópoles modernas, 44% da população economicamente ativa – em 1980 o índice alcançava apenas 27%.
A inserção da mulher no mercado de trabalho (essa bandeira eleita para a independência, para o igualar-se ao homem) tem revigorado e, a um só gênero, transtornado as relações sociais. O que elas nos proporcionam é isso: a fascinação, como se diria de uma vertigem audiovisual.
Última emoção espiritual desses finais de tempo. Espécie de Sílvia Pfeifer, personagem musical do Fausto Fawcet e Marcelo de Alexandre, em que os “habitantes de um supergueto capitalista costumam concentrar o olhar no rosto da mais bela e sofisticada das manequins”.
Shows de realidade patrocinada. Mundos que só existem no desejo. – Espelho, espelho meu, quem é mais bela do que eu? Bruxas malvadas, sereias, mocinhas.
Todas delirantemente manequins. Ser modelo continua a ser a profissão mais apaixonante desde as três últimas décadas. Corpo sensual, gestualidade energética. To be or not to be, that is the fashion.
Guerreiras do império da moda. Marionetes raptadas pelos clicks incessantes de fotógrafos, pelas exigências de mil produtores, pelos retoques inacabáveis de um batalhão de maquiadores.
Negras, índias, loiras, ruivas e morenas. Secretárias. Executivas. Jornalistas destemidas ou, por isso mesmo, agredidas. Parlamentares combativas. Deusas desinibidas dos anúncios de lingeries, cervejas, margarina, carros e relógios. Cabelos sedosos de todo e qualquer shampoo. Donas de mil caras e gestos que se metamorfoseiam.
Em suma, uma over lap (superposição) de sentidos como é próprio desses tempos tão caleidoscópicos. Mais de dois séculos após a Revolução Francesa e a gente acaba descobrindo que as modelos são descendentes de uma miniatura em madeira, idéia de Luiz XIV, o despótico Rei Sol.
A palavra modelo é de origem flamenca com função (oh doce semântica dos corpos) aperfeiçoada nos meados do século XIX, quando bonitas moças cheinhas e róseas, à la Renoir, desfilavam delicadamente os imensos xales de arabescos cashmere para as clientes art-nouveau, nas melhores lojas de tecidos de Paris, centro da moda feminina.
Atravessando vitrines e lentes, com o desejo na alma, super-top-model dos melhores desfiles internacionais, sabem vender caro o fetiche de curvas volutas. Ou, lidando com tubos de ensaio, abrindo e controlando válvulas, operando equipamentos pesados, atletas imbatíveis das olimpíadas, propondo e debatendo políticas públicas, impõe-se profissionalmente com o desejo de continuar sendo vista como mulher, bonita e charmosa.
Sim, atingidas pelo feminicídio, pela desigualdade na remuneração, elas permanecem adormecendo ao lado dos filhos, com ou sem o fardo de Eva.
Prenhas do mito do amor materno ou livres das amarras do machismo, elas vão continuar sendo o máximo do mínimo divisor comum da linguagem cosmética que nos resta sobre a epiderme da contemporaneidade nesses tempos pós-modernos.
*Albenísio Fonseca é jornalista, poeta e compositor, colaborador do Portal Turismo Total.