Salvador 474 anos: controvérsias marcam a data de fundação da capital baiana

 

Por Albenísio Fonseca*

É certo que a chegada de Tomé de Souza (1503 – 1579), com sua armada, à Quirimurê – como os povos nativos denominavam a Baía de Todos os Santos – composta por três naus (São Salvador, N. S. da Conceição e N. S. da Ajuda), duas caravelas (Leoa e Rainha), um bergantim (São Roque) e duas outras naus de comércio, aconteceu em 29 de março de 1549.

Contudo, como relatam os mais diversos historiadores, tanto ele quanto todas as 1.086 pessoas embarcadas somente desembarcariam em 1º de abril, sendo recepcionados por Caramuru, quando de fato e de imediato deu-se início à construção da primeira capital do Brasil.

Conforme Theodoro Sampaio, no livro “História da Fundação da Cidade do Salvador”, (publicada postumamente, em 1949, pela Tipografia Beneditina): “eram 320 homens de armas, entre bombardeiros, espingardeiros, besteiros, atabores e simples soldados, 90 marinheiros, 70 profissionais (carpinteiros, ferreiros, serradores), 30 funcionários públicos, seis padres da Companhia de Jesus, além de alguns clérigos seculares, comandados por Manuel da Nóbrega; 400 degredados, 300 colonos e outros peões para o trabalho pesado”.

A estes números, também com base em Theodoro Sampaio, são somadas 100 pessoas da família de Caramuru e agregados, além de outros 50 estrangeiros que já viviam na Vila do Pereira (no hoje Farol da Barra), totalizando 1.236 seres, sem que se contasse com presenças dos que já habitavam as capitanias de Ilhéus e Porto Seguro na recepção a Tomé de Souza e na tarefa da edificação urbana.

Vale considerar, ainda, os cerca de mil indígenas que moravam em 300 casas “construídas mais ou menos à moda ameríndia, embora não fossem malocas, nem sugerissem uma aldeia tupinambá”, como observa o poeta e escritor Antonio Risério em seu livro “Uma História da Cidade da Bahia”, tomando como referência obra “História General y de las Indias”, de Oviedo y Valdés, que perambulou por essas bandas em 1535. Outros historiadores estimam a população nativa na Bahia entre 5 mil a 10 mil índios.

Um regimento e triplo mandato 

Com triplo mandato: capitão da povoação e terras da Baía de Todos os Santos, governador-geral da capitania da Bahia e primeiro governador-geral de todas as capitanias e terras do Brasil – Tomé de Souza trazia debaixo do braço o Regimento do Governador e Capitão Geral, com as ordens do rei Dom João III (1502 – 1557).

Redigido em 17 de dezembro de 1548, com 48 artigos, o Regimento determinava a fundação da cidade-fortaleza e tratava da defesa militar da costa, das relações com os índios, das doações de sesmarias, além de definir a cobrança dos proventos devidos à corte. “Foi o que alguns chamam de a primeira Constituição do Brasil”, já mencionara o historiador Cid Teixeira.

A data oficial com que se passou a comemorar a fundação da cidade, no entanto, somente veio a ser determinada através da portaria 299 de 11 de março de 1952, assinada pelo então prefeito Osvaldo Veloso Gordilho, e instituía o dia em que o português Tomé de Sousa chegou no atual Porto da Barra, em 29 de março de 1549.

Dois meses antes da chegada da armada, o rei mandara carta a Caramuru pedindo sua colaboração: “Porque sou informado, pela muita prática e experiência que tendes dessas terras e da gente e costume delas, o sabereis bem ajudar e conciliar, vos mando que quando o dito Tomé de Souza lá chegar, vos vades para ele, e o ajudeis no que lhe deveis cumprir e que vos encarregar”.

A razão principal para a implantação da cidade (até então só existiam vilas) como capital do Brasil (o que se consolidaria por mais de dois séculos, de 1549 a 1763) e da vinda de Tomé de Souza, militar e político português, filho ilegítimo de um padre, à colônia, foram as revoltas promovidas pelos indígenas, onde a presença dos portugueses já era efetiva e o intenso contrabando liderado por franceses, além do fracasso econômico e administrativo do regime de capitanias.

Tupinambás declararam guerra 10 anos antes 

Ao longo do tempo, os índios perceberam que estavam perdendo gradativamente a posse da terra, frente às construções de engenhos, feitorias de pedra e cal dos portugueses que expandiam sistematicamente as plantações em sítios e fazendas cada vez mais extensos, além de promoverem maus tratos aos silvícolas “que acolheram com descuidosa indiferença e quiçá boa vontade ao donatário e seus colonos”, como ressaltaria Theodoro Sampaio.

Dez anos antes da chegada de Tomé de Souza, os Tupinambás haviam declarado guerra aos brancos portugueses. “Incendeiam seus engenhos na periferia da Vila do Pereira, sitiam a povoação e dão cabo de muitos lusitanos”.

Cinco anos de confronto e Francisco Pereira Coutinho foge de seu feudo para morrer, no ano seguinte, ao naufragar e cair nas mãos dos aborígenes da ilha de Itaparica, em 1545.

No simbólico local do desembarque de Tomé de Souza, no atual Porto da Barra, foi instalado o monumento Marco de Fundação da Cidade do Salvador.

Inaugurado em 29 de março de 1952, com uma estrutura vertical, esculpida por João Fragoso (1913–2000) em pedra de lioz portuguesa, com o símbolo da Coroa Portuguesa e a Cruz de Cristo, além de um painel de azulejos, originariamente de autoria de Joaquim Rebucho, que retrata a chegada de Tomé de Souza. Desgastado pelo tempo, o painel atual é uma réplica do original, feito em 2003 pelo artesão Eduardo Gomes.

Um pedaço de rocha que foi usado pelos portugueses para determinar os limites de Salvador, primeira capital do país, é único marco original da fundação da cidade que ainda resta.

Mantido em segredo até 2019, o marco está guardado em uma sala do prédio onde vai funcionar o museu da igreja católica na capital baiana. Conforme os historiadores, após desembarcar em terras brasileiras em 1549, o português Tomé de Sousa, trouxe o marco de Portugal e nele está inscrito “Torre do Tombo”.

“ Não se pode inaugurar o que não existe

Mesmo sem aludir ao aspecto fundamental da portaria que determinou a data oficial, o escritor e historiador Renato Luís Bandeira lançou no IGHB-Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em julho de 2019, o livro (como se diria de uma joia rara) “1549 – Cidade do Salvador, a polêmica data da sua fundação”, em Edição do Autor.

A publicação levanta questionamentos acerca da fundação da Cidade. “Não se pode inaugurar o que não existe” afirma o escritor, ao referir-se à fundação da cidade em 29 de março.

Bandeira contesta a data da fundação oficial e, através de argumentos bem fundamentados, defende o “17 de dezembro de 1548”, que demarca o Regimento de D. João III, como a data mais legítima para a fundação da primeira capital do Brasil.

O autor mostra, ainda, que “somente em 1923 se começou a discutir a data da fundação, no Conselho Municipal da Cidade do Salvador, e elenca documentações que seriam acrescidas nos anos seguintes.

O livro conta, entre outros muitos aspectos, sobre os primeiros povoadores da cidade e aborda as primeiras construções comandadas pelo primeiro Governador-geral. Traz, inclusive, a relação nominal de todos os integrantes da comitiva.

O autor trata, também, sobre as ações genocidas promovidas nos anos seguintes, após a substituição de Tomé de Souza por Mem de Sá (irmão do poeta Sá de Miranda), que morreria em Salvador em 2 de março de 1572.

A edição do livro de Renato Luís Bandeira conta com 236 páginas, nas quais reproduz a íntegra do Regimento de Dom João III, e é ilustrada por 142 fotografias antigas de Salvador. *Imagem, reprodução

*Albenísio Fonseca é jornalista e compositor/Colaborador do Portal Turismo Total.

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