Índios yanomamis apostam no turismo para afastar ameaça de garimpo e ganhar autonomia

Por João Fellet 

Fechado a turistas desde 2013, o Pico da Neblina – ponto mais alto do Brasil, a 2.994 metros acima do nível do mar – está sendo reaberto à visitação.

A montanha, próxima à fronteira com a Venezuela, deve receber os primeiros grupos de turistas até o fim do ano. A atividade será gerida por comunidades do povo yanomami, cujo território se sobrepõe a boa parte do Parque Nacional do Pico da Neblina.

A BBC visitou aldeias yanomamis da região de Maturacá em novembro, quando acompanhava uma expedição pioneira de biólogos da USP ao Pico da Neblina – chamado pelos indígenas de Yaripo. As comunidades ficam a alguns dias de caminhada do pico e são vizinhas do Quinto Pelotão Especial de Fronteira, uma base do Exército dentro da Terra Indígena Yanomami.

Dezenas de homens e mulheres foram treinados nos últimos anos para receber os turistas, iniciativa apoiada pelo Instituto Socioambiental (ISA) e órgãos do governo.

As comunidades esperam que o turismo dê mais autonomia às comunidades e afaste os apelos do garimpo, que já deixou sequelas na região.

Anciãos yanomamis na aldeia Maturacá
Território yanomami sofreu grande invasão de garimpeiros nos anos 1980. Image caption

Invasão garimpeira

Nos anos 1980, dezenas de milhares de garimpeiros invadiram o território yanomami em busca de ouro. Muitos foram expulsos, mas a atividade jamais foi totalmente erradicada.

A trilha que dá acesso ao pico passa por vários antigos locais de garimpo. A mineração desviou riachos e provocou o surgimento de lagos e praias de pedregulhos. Em alguns garimpos desativados há décadas, a vegetação começa a se regenerar.

O Exército disse à BBC que a região está livre de garimpo há um bom tempo. Porém, nossa equipe encontrou sinais de atividade recente em alguns acampamentos de garimpeiros, como pilhas descartadas e uma embalagem de comida fabricada em 2016.

Em Maturacá, mulheres yanomamis relataram que garimpeiros têm oferecido 21 gramas de ouro (o equivalente a R$ 3 mil) a indígenas para que levem comida até um garimpo do lado venezuelano da fronteira.

O Pico da Neblina
Pico da Neblina fica dentro do território yanomami, perto da fronteira com a Venezuela. Image caption

 

O acesso ao local é feito a pé pela mesma trilha que dá acesso ao Pico da Neblina. Há relatos sobre a presença de garimpeiros de São Gabriel da Cachoeira (AM) na área. O ouro circula pela região livremente. Numa loja vizinha à base do Exército em Maturacá, é possível comprar mercadorias com o metal, pesado numa balança sobre o balcão. Analista do ICMBio (órgão federal que gere o Parque Nacional do Pico da Neblina), Flávio Bocarde diz que o garimpo é um fator de “grave erosão cultural” na região.

“O pai fica fora da casa por longos períodos, deixando para trás a mulher e os filhos. Quando começa a negociar só com ouro, passa a vendê-lo em troca de comida, o que altera totalmente sua relação com a alimentação. A caça e a agricultura tradicional são abandonadas”, afirma. A atividade também gera o risco de contaminação por mercúrio, normalmente usado pelos garimpeiros para identificar o ouro.

Em 2016, um estudo do ISA em parceria com a Fiocruz e a FGV (Fundação Getúlio Vargas) revelou índices preocupantes de contaminação por mercúrio em aldeias yanomamis próximas a garimpos em Roraima. Numa delas, o índice de moradores com altos níveis de mercúrio no sangue chegou a 92%. A substância está associada a problemas motores e neurológicos, perda de visão e danos em fetos.

Lobby pró-mineração

Hoje a mineração em terras indígenas é ilegal. Em 1996, o senador Romero Jucá (MDB-RR) propôs um projeto de lei para regulamentar a atividade. A proposta tramita desde então. Nos últimos anos, o movimento ganhou um novo articulador – o deputado estadual amazonense Sinésio Campos, do PT. Entre os apoiadores da causa está o indígena e ex-garimpeiro Clóvis Curubão (PT), atual prefeito de São Gabriel da Cachoeira, município onde fica parte do território yanomami.

“A maioria da população indígena daqui não tem acesso a benefícios do governo. São as pessoas mais esquecidas do Brasil. A única solução para o município, onde 98% da população é indígena, é a mineração”, diz Lucas Duarte, aliado de Curubão e presidente das Cooperação Indígena para Extrativismo de Recursos Naturais e Minerais, em São Gabriel da Cachoeira. As principais associações yanomami, porém, são contra a mineração em áreas indígenas. “Os garimpeiros não estão mais conosco”, diz Antônio Yanomami, líder da comunidade Maturacá.  “Eles costumavam ganhar dinheiro aqui, mas destruíram a terra. Agora não permito mais que a terra seja destruída. Nossos jovens nos ensinaram como solicitar a força policial e agir mais rapidamente.”

Caçadores yanomamis cumprimentam visitantes em ritual na aldeia Maturacá
Pesquisadores cumprimentam caçadores yanomamis em ritual na aldeia Maturacá.Image caption

 

‘Velhos tempos’

Em Maturacá, muitos yanomamis dizem esperar que o turismo afaste de vez os garimpeiros. “Nos velhos tempos, eu mesmo pensei que nosso futuro estava no garimpo”, diz Salomão Mendonça Ramos, um dos yanomamis à frente do projeto de turismo. “Ainda há algumas pessoas que garimpam um pouco, sem danificar a natureza. Esperamos que essas pessoas deixem de lado esse trabalho sem futuro e se juntem ao ecoturismo”, ele afirma.

O Pico da Neblina já recebeu turistas, mas as expedições costumavam ser organizadas por agências externas, modelo que estava gerando conflitos nas comunidades. Agora, os próprios yanomamis administrarão a atividade. “O pagamento era muito pequeno. Agora queremos que os turistas paguem mais, para que possamos melhorar a vida das famílias dos guias e carregadores”, completa Ramos.

*Fonte: BBC Brasil

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