Da Redação
Trem de longa distância, trem diário, trem de fim de semana. Trem que passa por estradas de ferro centenárias, serpenteia a Serra do Mar, corre por planícies pantaneiras, contorna pedaços raros de Mata Atlântica nativa. Tem trem pra todo mundo – e não estamos falando de Europa.
Ainda que a malha ferroviária brasileira não seja lá para inglês ver, temos quase 30 000 quilômetros de trilhos e estações que servem de cenário para novelas de época. Pois a Viagem e Turismo decidiu fazer um trem divertido: percorrer este Brasilzão através de suas ferrovias.
Escolhemos cinco trechos e passamos por quase todas as regiões do país. Foram 1.689 quilômetros dentro de marias-fumaças, litorinas e locomotivas diesel-elétricas. A epopeia, que começou em Minas Gerais, na estação imperial de São João Del Rei, só terminou 12 dias depois.
Fomos de São João a Tiradentes de locomotiva a vapor e de Belo Horizonte a Vitória em vagões novíssimos. No Espírito Santo, desfrutamos das Montanhas Capixabas. Encaramos também a lendária Estrada de Ferro Carajás, entre o Maranhão e o Pará, por 16 longas horas, antes de fazer o famoso trecho de Curitiba a Morretes, no Paraná.
Voltamos com histórias que mostram a exuberância natural e cultural deste país acachapante, ainda mais delirante se visto sob outra perspectiva. A dos trilhos.
De volta ao passado na maria-fumaça — São João Del Rei → Tiradentes (MG)
Jovens aguardam ansiosos o apito da partida, senhoras acenam com lenços para amores viajantes, moços veem das janelas suas saudades virarem pequenos pontos no horizonte. Minas Gerais, que carrega ouro, prata e minério de ferro nas veias, é a estrela das estações centenárias do país, que por anos revelaram cenas como essas.
Por causa de uma bitola (a distância entre os trilhos) de apenas 76 centímetros, a lendária Estrada de Ferro Oeste de Minas leva o apelido de “Bitolinha”. No século 19, ela se estendia por 602 quilômetros até o litoral carioca.
Hoje só vai de São João Del Rei a Tiradentes (12 quilômetros), mas segue causando auê entre os moradores, que correm para ver a maria-fumaça passar.
Das cidades históricas mineiras, São João foi a que mais se expandiu. Ela guarda um centro histórico conservado e igrejas esplendorosas (a de São Francisco de Assis ganha menção honrosa pela fachada com palmeiras-imperiais).
Começar a viagem por São João (e não por Tiradentes) é a melhor maneira de embarcar no passado, já que sua estação tem o Museu Ferroviário, que volta às origens com litografias e objetos de antigamente.
O maquinista Alexandre costuma lagartear por lá antes de botar o trem nos trilhos. “Sabe como funciona uma panela de pressão?”, é o jeito com que começa a explicar o mecanismo da locomotiva a vapor.
Já são dois séculos de invenção, mas ainda impressiona ver essa gigante funcionar assim: à base de água e óleo. Países com tradição ferroviária, como a Alemanha, já aposentaram suas marias-fumaças há anos. Ou seja, elas são um tesouro.
Dada a largada, aparece a Edna, que vende memória afetiva em forma de doce – pirulito de mel, pé de moleque e cocada com limão. Ela é filha do Seu Zé do Ferro Velho, o doceiro mais antigo de São João.
Edna, a filha do doceiro mais antigo de São João
Lá fora, o verde da mata divide espaço com o amarelo-manga dos ipês (primavera!), e uma brisa boa entra pela janela de guilhotina. O auge é quando avistamos o Rio das Mortes, o córrego dos injuriados da Guerra dos Emboabas, que corre translúcido na frente dos blocos de pedra da Serra de São José.
E quando a viagem começa a dar um caldo… Fóóón. Chegamos. A brincadeira acaba em 37 minutos. Antes de decidir se você quer chegar ao miolo de Tiradentes a pé (a 1,5 quilômetro) ou de charrete, assista aos funcionários puxarem, manualmente, a frente do trem para inverter a direção.
Coincidências à parte, o episódio atraiu os celulares de uma turma da escola “Piuí Cha Chá”. E o desembarque na hora do almoço é providencial para conjugar o tour com qualquer coisa que venha de um fogão a lenha. Trem bom demais.
Extensão: 12 km (40 minutos de viagem).
Estações: duas (São João Del Rei e Tiradentes). Partidas: de São João: 6ªs 10h, 14h; sáb 10h, 13h30 e 15h30; e dom 10h e 13h30. De Tiradentes: 6ªs 11h30, 16h; sáb 11h, 14h30 e 16h30; e dom 11h e 14h30. Onde comprar: nas bilheterias das estações ou nas agências de turismo. Fica a dica: pode lotar aos sábados, especialmente durante as férias escolares e em épocas de festivais em Tiradentes (como o de cinema, no fim de janeiro, ou o de gastronomia, em agosto). Melhor lado do vagão: esquerdo (sentido São João – Tiradentes). Dá visões mais amplas da imensidão e cai de frente para os paredões da Serra de São José nos instantes finais. |
Rota clássica, trens modernizados — Belo Horizonte (MG) → Vitória (ES)
Entre cotoveladas de crianças eufóricas e pedidos para tirar fotos de famílias inteiras com malas de rodinhas nas mãos, desisto de ter pressa. Às 6h30, uma hora antes do embarque em Belo Horizonte, o bafafá nas catracas já é grande. “Por que está tão cheio?”, pergunto a um funcionário. “É que chegaram os novos vagões, todos com ar-condicionado. Agora todo mundo quer andar de trem.”
Vindos da Romênia, os 56 novos vagões começaram a rodar em 2015. Operada pela Vale, a Estrada de Ferro Vitória a Minas, concluída em 1907, é o único trem diário de passageiros do Brasil – cada perna com 664 quilômetros. Só em 2013 cerca de 1 milhão de pessoas viajaram pela EFVM.
A tendência, com o tal ar-condicionado e outras modernidades, é o bafafá crescer ainda mais. Cada vagão abriga quatro câmeras de segurança que tranquiliza quem quer andar pra-lá-e-pra-cá sem ficar neurótico com as malas.
O primeiro pit stop é em Barão de Cocais, município próximo da Serra do Caraça, de onde saem trilhas para cachoeiras. A partir daí, o entra e sai de passageiros se repete 28 vezes.
O movimento é tão intenso que complica o embalo do sono, assim como os atrativos da janela: ameace fechar os olhos que logo aparece uma coleção de bromélias, além de muitos vagões de minério no sentido contrário. São muitos mesmo: ao todo, eles transportam 37% da carga ferroviária do país.
Por volta do meio-dia, o ferromoço (o comissário de bordo do trem) passa gritando “Marmitex!”, e por R$ 17 arrematei um estrogonofe, dentro de um isopor, bem no padrão “comida de avião”. Dica: no vagão-restaurante, a mesma refeição vem num prato. Vale a pena levantar.
Passageiros espiam a imensidão lá de fora
Duas horas depois o Rio Doce aparecia, indicando a proximidade de Governador Valadares, metade do percurso. A fim de conferir a antropologia local, gastei sete minutos cruzando os vagões, do A ao M, transpondo portas que se abriam magicamente ao toque de um botão. Vi um pastor, munido de Bíblia, pregando em alto e bom som para uma infinidade de gente entretida com os celulares.
Depois de muitos pães de queijo crocantes, paisagens verdes ad infnitum e de estações que mais parecem estar no meio do nada, rochas enormes brotam de um lago cristalino, antes da divisa com o Espírito Santo.
Foram dez minutos de pura contemplação, até a noite cair. Eram 20h32 quando desci na estação Pedro Nolasco, em Cariacica, a dez minutos de Vitória. Por mais confortável que seja o trem, a viagem é… longa. Treze horas. Mas, se não houver pressa, não existe transporte melhor – nem mais barato – para ir de BH a Vitória
Extensão: 664 km (13 horas de viagem).
Estações: 30 no total, com 28 paradas. Cada uma delas pode demorar de 2 a 10 minutos. Partidas: todos os dias. De BH, sai às 7h30. De Vitória, sai às 7h. Onde comprar: no site, ou nas bilheterias das estações. Fica a dica: é mais cheio no sentido BH–Vitória (são os mineiros querendo chegar à praia…). Muita gente que faz um trajeto completo de ida acaba voltando de avião. Melhor lado do vagão: esquerdo (sentido BH–Vitória), pelos vales que aparecem no meio do caminho, e principalmente pelas rochas que brotam do rio, antes da divisa dos estados. |
Descobrindo o segredo das montanhas capixabas – Viana → Araguaia (ES)
Dos 56 passageiros a bordo, apenas eu e o fotógrafo Fernando não éramos capixabas. “Os turistas que vêm para o nosso estado só ficam nas praias, comendo moqueca”, disse o funcionário público Marcos Barcelos, que curtia um domingão em família. “Este é um dos pedaços mais intocados do Brasil”, completou.
É preciso concordar: repleta de cachoeiras, a região serrana do Espírito Santo é verde, verde, verde. E a paisagem é apenas um dos atrativos deste passeio de trem, que tem vendedores de biscoitos de goiabada no caminho e um belo vilarejo de imigrantes italianos no final.
O embarque é em Viana, a 22 quilômetros de Vitória. O percurso, que nasceu em 1895 e fazia parte da Leopoldina Highway (homenagem a Maria Leopoldina, a primeira imperatriz do Brasil), dura quatro horas.
O cenário não é para quem tem vertigem: os trilhos beiram inúmeros precipícios, alguns a 500 metros de altura. Até a árvore que caiu no meio do caminho, e que fez o maquinista parar tudo, parecia encomendada para incrementar a aventura.
No todo, a viagem é um desfiladeiro por pontes de pedra, cânions, fragmentos da Mata Atlântica, florestas de eucaliptos e bromélias que brotam dos paredões.
Na única parada, na estação de Marechal Floriano (que tem fotos de “gente importante” da cidade nas paredes), flertamos com os vendedores de biscoitos. O hit é o Crispim, um casadinho de goiabada com queijo parmesão.
Araguaia, o ponto final, tem 3 mil habitantes. A cidade é uma graça. Muita gente dorme por lá e volta no dia seguinte, no trem de domingo. Outros fazem bate e volta, almoçando no bufê italiano Bella Araguaia, que é honesto, mas sempre lotado.
Casa do Nono, perto da estação final
A terceira opção é voltar de van para Vitória, fechando um pacote com a Serra Verde Express. Numa segunda viagem de três horas, fomos almoçar na Casa da Bica (que tem quiabo com linguicinha e minicachoeira) e, depois, para o pé da Pedra Azul, com seus 1 400 metros de altitude.
Tão bonita que nos fez questionar por que estávamos hospedados em Vitória, e não ali, naquelas pousadinhas de arquitetura da escola Zanine Caldas (quem não curtir rusticidade pode escolher o Arosa, hotel neoclássico muito procurado para books de casamento).
No fim, quando já se entende que o Espírito Santo é muito mais do que praia de areia escura, moqueca sem dendê e Roberto Carlos, há o belo mirante da Vista Linda, de onde se vê o mar de Guarapari, cidade-sede de quase todas as minhas férias de infância nos anos 90. Meus pais bem que podiam ter aproveitado aquelas viagens para conhecer seus arredores bucólicos.
Extensão: 46 km (quatro horas de viagem).
Estações: quatro (Viana, Domingos Martins, Marechal Floriano e Araguaia), mas o trem só para em Marechal (15 minutos), antes do ponto final. Partidas: sábados,domingos e feriados. Sai de Viana às 10h30, vai até Araguaia, onde há uma parada de 1h30, e depois retorna para Viana. Onde comprar: por enquanto, só com a Serra Verde Express, em Vitória (27/2123-0228) ou em Curitiba (41/3888-3488). Fica a dica: em Araguaia, vale visitar a Casa Rosa, que foi de um engenheiro da ferrovia e hoje é um pequeno museu. Melhor lado: direito (sentido Viana–Araguaia), na beira dos precipícios mais arrebatadores e com as melhores vistas para o Rio Jucu. |
Na trilha de um barreado diferente – Curitiba → Morretes (PR)
Quando chegamos a Morretes para o almoço, o guia do trem nos explicou que, para comer o barreado, era preciso primeiro fazer o pirão, misturando o caldo com a farinha de mandioca, e só depois atacar a carne de panela.
No restaurante, entretanto, o garçom juntou tudo de uma vez, no mesmo prato. Informado da orientação anterior, soltou: “Ah, curitibano, né? Não sabe nada de barreado”. Foi aí que eu aprendi: para provar o verdadeiro, é preciso sair de Curitiba.
O Trem da Serra do Mar Paranaense é sem dúvida o mais conhecido do Brasil. Ele conecta a capital do Paraná ao litoral e circula desde a inauguração da ferrovia, em 1885, quando nasceu para exportar erva-mate e madeira, num dos projetos mais ousados do Brasil imperial – 9 mil operários, a maioria imigrantes ucranianos e alemães, escavaram 13 túneis e fizeram mais de 30 pontes. Na época, eram nove horas de Curitiba até a estação final de Paranaguá. Hoje, para em Morretes.
São 110 quilômetros ziguezagueando pela maior área de Mata Atlântica preservada do Brasil, com bananeiras dando aquele tom tropical. O flé da paisagem acontece depois do Túnel 13, quando as araucárias saem de cena para dar lugar a bromélias amarelas e vermelhas, brincos-de-princesa e manacás.
Outras belezas: a vista das águas turvas do Rio Ipiranga e a Ponte São João, que tem um vão de 112 metros de comprimento e foi produzida na Bélgica, “com o mesmo aço da Torre Eifel”, segundo o maquinista Jaime.
Na metade do caminho, a Curva do Cadeado, antes do mirante que tem uma capela com uma porta que imita o buraco de uma fechadura, produz as melhores fotos.
Brasil de trem – matéria da revista Viagem e Turismo – edição 228 – novembro 2014 –Nas alturas
Além do trem regular, a linha Curitiba– Morretes também pode ser vencida de litorina – há a versão standard e a de luxo. A litorina foi uma invenção de Mussolini, que queria “um transporte rápido e exclusivo que não fizesse barulho”, para ir de Roma a Litória, na Itália.
Hoje existem apenas cinco no mundo, três delas no Brasil – as duas do Paraná e a que faz o Trem das Montanhas Capixabas. Na opção luxo, há um vagão inspirado em Copacabana e outro em Foz do Iguaçu.
O mobiliário foi garimpado de antiquários, e o fundo musical investe em bossa nova “lounge”.
A guia, que nos recebe com chapéu anos 30 e terninho preto, serve espumante Moscatel de boas-vindas. A velocidade superbaixa faz com que qualquer um consiga comer um croissant, beber um café e observar a paisagem ao mesmo tempo, sem derrubar nada.
A fotógrafa Suellen, que usava uma boina vermelha, disse que escolheu a versão luxuosa porque “queria se sentir nos tempos da Belle Époque”.
Extensão: 75 km (de três a quatro horas de viagem).
Estações: quatro (Curitiba, Banhara, Marumbi e Morretes), mas só para no final. Partidas: de sextas a domingos, sai às 8h15 de Curitiba e chega às 12h30 a Morretes. Nos mesmos dias, sai de Morretes às 15h. As litorinas saem aos sábados, domingos e feriados, às 9h15, chegando às 12h15 a Morretes e retornando às 15h. Onde comprar: por telefone (41)3888-3488 ou pelo site, nas agências de turismo ou nas bilheterias das estações. Fica a dica: na Litorina de luxo, a cabine do maquinista é liberada para visitas. Apreciar a vista lá da frente é uma emoção. Melhor lado: os dois lados proporcionam belas vistas. |
A longa e extrema viagem pelo Norte – São Luís (MA) → Parapuebas (PA)
Às 8 da manhã o trem nem havia partido, mas a passageira da diagonal já dormia com seus tapa- olhos no rosto. Na primeira poltrona, uma senhora fazia crochê. Em pé no corredor, outra mulher, vestida com calça de ginástica, se alongava.
No banco de trás, um menino de boné vermelho chorava ensandecido. “Eu não quero andar de trem!” Perguntei para onde estava indo. “Para o aniversário da minha prima.” Ele não soube dizer em qual das 14 paradas seguintes desceria. Só enfatizou que ia demorar. Muito.
Se existe uma prova de fogo dos trilhos nacionais, a Faroeste Caboclo dos trens ou o Ironman das estradas de ferro, é esta viagem: são 892 quilômetros, o mais longo percurso de trem de passageiros do Brasil. A jornada entre São Luís do Maranhão e Parauapebas, no sudeste do Pará, leva 16 horas.
Na teoria. Na prática, podem ser 20. Não é uma questão de pontualidade – é da mecânica natural de uma ferrovia que transporta até 330 vagões de carga por dia, número que faz dela, segundo levantamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a mais eficiente do Brasil.
Logo imaginei qual seria o status daqueles passageiros no final: a senhorinha confeccionaria um casaco inteiro, e a menina da diagonal babaria dezenas de vezes no travesseiro. É uma estrada de ferro para quem tem aferro.
No trem, todos os vagões têm TVs, que começaram com o desenho da Disney Ratatouille, dublado e com legendas em português, e continuaram com uma sequência romântica de blockbusters. Entre os carros há varandas em que alguns se debruçam pra ver a paisagem correr lá fora.
O espaço é disputado, inclusive pelo pessoal da classe executiva, que ou morre de frio com o ar-condicionado ou não vê quase nada da paisagem, atrás das janelas travadas e embaçadas. O ar ali é tão forte que “dava até para fazer um ensaio fotográfico de cobertores”, como disse o fotógrafo Fernando.
Eram felpudos, coloridos, de bolinhas, do Mickey. De fato, sair dali e entrar na classe econômica era como ir do Alasca direto ao Senegal.
Bolo de tapioca frita, açaí, pamonha e água de coco. Vem tudo do lado de fora
Entre as duas classes, os estilos dos personagens do comboio se multiplicam – um pot-pourri de jovens com fones de ouvido colossais, meninas de Ray-Ban, famílias inteiras (a maioria com mais de dois filhos) e muitas jovens mães com bebês.
Na primeira parada, em Araí, a 120 quilômetros da partida, saio para “tomar um ar” e conheço as estudantes Jeciara, Nayara e Sulamini. Estavam a caminho de Alto Alegre, onde rolaria uma festa em praça pública no fim de semana. “Nós nunca vamos de executiva. É muito frio”, disseram. Elas pagaram R$ 18 pela passagem até a terceira estação.
A cada parada chegam novas malas tamanho GG, sacos de ração, engradados de isopor, embrulhos gigantescos de presente. A família que desce tromba com a família que sobe, e um fiscal tenta organizar tudo, sem muito sucesso. Mas todos viajam tranquilos.
No vagão-restaurante, vi um segurança paquerar com afinco a moça da cozinha, enquanto a torcida do Flamengo (um pai e três filhos de camisa rubro-negra) mandava ver no Guaraná Jesus.
O cardápio tinha pratos a R$ 10, com arroz, feijão, salada, macarrão e a carne do dia – “uma carne aí de gado”, segundo o vendedor. Mas o sucesso eram as refeições que vinham das estações pelas janelas: pratos com arroz de buriti e macarrão (R$ 5), bolo de tapioca frita e laranjas descascadas (preço incrível: um saco inteiro por R$ 1).
Havia também açaí gelado, que no Maranhão se chama juçara. Sai a torcida do Flamengo e entra a do Sampaio Corrêa, um dos times de São Luís.
Seu irmão?
O tempo vai passando, e a paisagem vai ficando mais amazônica. E o calor também. Às 14 horas já era complicado viver dentro da econômica, e até o Alasca da executiva parecia passar por um veranico.
Todas as crianças de até 3 anos já estavam de fralda. No vagão L, conheci Emanuelle, que com 15 anos se mudava do interior do Maranhão para Parauapebas. Cometi uma gafe ao perguntar se ela viajava com o irmão. “É o meu esposo.” Ele, que era soldador, ia tentar uma vida melhor na região da mina de Carajás.
Os dois viajavam com uma mala gigante e um ventilador portátil. Quando volto ao Alasca, a configuração dos meus arredores já estava diferente e havia clones do Romário e do Jorge Ben Jor.
Mas a menina da diagonal de tapa-olhos continuava ali, agora acordada. E a funcionária da cozinha trazia uma marmita para ela. “Já pedi a carne umas três vezes, e toda hora você me traz fango”, reclamava.
Mas a viagem é chata no Alasca. Não dá para ver nada das janelas, e ninguém oferece comida típica, lá de fora. Resolvo voltar para a econômica. A TV pifa. O calor domina, mesmo às 18 horas. Cada um se abana do jeito que dá, com panos de prato ou bonés. Todos os meninos de até 7 anos já circulam só de cueca. Ufa, chega uma parada, Açailândia. Pergunto para a menina do lado se é a terra do açaí, ops, da juçara. “Não, é da farinha de mandioca.” O pôr do sol é escandaloso, mas o calor não se põe. Pelas janelas, ambulantes distribuem pedras de gelo dentro de garrafas pet por R$ 0,50. Do meu lado, uma mãe troca as faldas do bebê ali mesmo, no banco de passageiros. Ninguém parece se incomodar.
A Estrada de Ferro Carajás nasceu em 1985 para escoar a produção da mina de Carajás, a maior a céu aberto do mundo, até o Porto de Ponta da Madeira, em São Luís. Por ano, cerca de 350 mil passageiros embarcam ali. Mas a viagem, pelo menos nesse “estilo”, terminou.
Em 2015, o trem foi trocado por novos vagões, idênticos aos que fazem o trecho de Minas a Vitória. Ou seja, a jornada ficou sensivelmente mais leve.
As janelas foram travadas, os quitutes não chegaram pela janela nem foi mais possível usufruir do cenário – ainda que o melhor dessa viagem esteja dentro dos vagões. E sem ar-condicionado.
Extensão: 892 quilômetros (de 16 a 20 horas de viagem)
Estações: o trem parte de São Luís às segundas, quintas e sábados, às 8h. Às terças, sextas e domingos, realiza o percurso de volta, partindo também às 8h, de Parauapebas. Onde comprar: nas bilheterias das estações Fica a dica: para quem segue de São Luís e não tem nada para fazerem Parauapebas, é uma boa descer em Marabá, a cerca de 200 quilômetros da estação final. Marabá tem um aeroporto com voos da Azul que cobrem boa parte do Brasil Melhor lado do vagão: esquerdo (sentido São Luís–Parauapebas), o lado das janelas que dão acesso às comidinhas dos vendedores das estações. |
Um projeto que saiu dos trilhos — por que os trens de passageiros viraram uma rara e nostálgica opção de transporte no país
“Eu nunca viajei de trem” – atire o primeiro pedaço de ferro quem nunca escutou essa frase de um brasileiro.
O Brasil tem 29 800 quilômetros de trilhos (a maioria para transporte de carga) e apenas dois trens de longa distância para passageiros, de São Luís a Parauapebas e de Belo Horizonte a Vitória, ambos operados pela Vale (e testados para esta reportagem).
Os outros 29 trechos que recebem viajantes são turísticos, e poucos passam de quatro horas de viagem, sendo que alguns estão desativados. Ou seja: não dá para sair rodando Brasil afora de trem.
Mas o país que hoje corre pelo asfalto muito deslizou sobre trilhos. Na segunda metade do século 19, quando o café era a locomotiva nacional, o transporte de mercadorias era feito no lombo de mulas. As viagens das regiões produtoras até os portos levavam meses, e muita coisa se perdia no meio do caminho.
Assim, o barão de Mauá foi buscar recursos na Inglaterra e, sem um tostão do Império, bancou a primeira ferrovia do Brasil, em 1854, que conectava o Rio à Serra de Petrópolis.
Dom Pedro II logo se entusiasmou com a coisa e inaugurou quase uma dezena de ferrovias. Por décadas nossas estradas de ferro foram o pão e o leite de milhares de trabalhadores (muitos imigrantes italianos e alemães), que ajudaram a construí-las, e cidades inteiras nasceram nos arredores.
Com a falta de investimentos e poucos subsídios do governo, o negócio estagnou – e de fato não conquistou a simpatia dos governantes seguintes. O presidente Washington Luís já dizia que “governar era abrir estradas”.
E a chegada do projeto desenvolvimentista de JK, nos anos 1950, acelerou o processo. “O Juscelino, na verdade, apenas reconheceu a realidade. Construir rodovias era mais barato e dava um retorno rápido. Nossas empresas ferroviárias não eram mais rentáveis”, completa.
Há quem diga que nosso relevo litorâneo, permeado por rochedões, tenha dificultado ainda mais o negócio – vide a linha da Serra do Mar Paranaense, que precisou de milhares de homens para sair do papel. A verdade é que, passados dois séculos da invenção, nossa malha não tem previsão de crescimento. E o lendário trem-bala Rio–São Paulo segue na gaveta.
Fonte: Revista Viagem e Turismo