Por Seleucia Fontes – Especial para o Portal e Revista Turismo Total
Para muitos, visitar cemitérios é uma homenagem aos seus entes mortos. Para outros, é uma forma de turismo, o chamado turismo cemiterial, onde o foco principal são os túmulos de celebridades e personagens históricos. Mas em Santa Rosa, município na região Sudeste do Tocantins, há 166 km da Capital, fé, cultura popular, homenagens se unem em uma tradição secular. Estamos falando da saída dos congos durante os Festejos das Santas Almas Benditas, que acontece sempre no Dia de Finados, 2 de novembro.
Neste pequeno município com menos de 5 mil habitantes, os cemitérios são pequenos e os túmulos simples, muitos tão desgastados pela ação do tempo que nem trazem mais os nomes de seus ocupantes. Nada disso impede esta prática diretamente ligada às origens de Santa Rosa.
Qualquer morador local sabe contar a história do padre José Bernardino de Sena Ferreira, que por volta de 1857 fixou-se na região, formando a Fazenda Engenho. O padre tinha família, mulher negra e filhos, e também escravos, nascendo em sua propriedade os festejos de finados, que a cada ano atraía mais fieis, que aos poucos formaram um povoado. Foi chamado Santa Rosa, tendo permanecido como distrito de Natividade até 1988, nome em homenagem à santa de devoção de Sinhauta, filha do Padre Bernardino.
Resquícios da antiga fazenda ainda podem ser visitados na hoje Fazenda Açude, distante 10 km da cidade. Em meio a um extenso mangueiral há vestígios de um curral de pedras e o cemitério distante alguns quilômetros também trazem túmulos e cruzeiro igualmente antigos.
José do Bonfim conta que na infância ainda viu mobiliários da fazenda original, que aos poucos foram vendidos, na época em que quatro de seus tios adquiriram a fazenda. Mas os festejos sempre foram preservados, com a organização passando entre seus parentes. Por volta de 2009, a festa do Açude estava se perdendo, em função da morte de anciãos importantes. Bonfim conta que foi preciso um grande esforço e ajuda de todos para manter a tradição. “Para erguer o barracão batemos de porta em porta pedindo doações, cada telha foi doada por uma pessoa diferente”, conta com orgulho, lembrando que é projeto construir uma cozinha.
O festejo do Açude é o mais movimentado, reunindo grande quantidade de pessoas desde o dia anterior, quando há apresentação de forró, venda de alimentos e bebidas e a levantada do mastro com o rei e a rainha da festa. No dia seguinte, após o café da manhã com pratos típicos começa o cortejo dos congos, que seguem cantando até o cemitério, onde ocorrem homenagens e orações para as almas benditas. O Terço é rezado no retorno, em uma pequena capela, e dela os participantes partem para as últimas homenagens aos festeiros e o almoço.
A presença dos antigos mestres é sentida como uma bênção. O Congado do Açude ainda é liderado por Eduwiges Fernandes Pinheiro, que aos 94 anos ainda bate a caixa (tambor) com vitalidade. “A rainha veio mariada, veio com o rei de Portugal”, repetem os congos em clara referência à chegada da corte portuguesa ao Brasil. “Bom tempo foi aquele que Deus nos ajudou. O bom tempo foi se embora porque se acabou”, continuam os 12 homens que integram o grupo.
Valdenor Nunes da Silva, o Rei, responsável pela organização da festa de 2019, revela que cumpre uma promessa de ser o festeiro a cada 10 anos. Aos 65, já soma quatro décadas de promessa cumprida. “Vou fazer enquanto tiver forças”, revela com ares de gratidão e pela vitalidade da população local, é de se imaginar que ainda virão muitos festejos. E faz questão de explicar que a rainha, Tanásia Sales Dias, não é sua esposa, que não há essa obrigação se ser um casal a fazer a festa.
Morro São João
Os Festejos das Santas Almas Benditas também são uma tradição entre os moradores da comunidade quilombola do Morro São João, distante 34 km da cidade. Acredita-se que a região foi ocupada no mesmo período de formação da Fazenda Açude, por escravos fugidos da propriedade e que já tinham assimilado a festa. Hoje, a comunidade conta com 70 famílias e se ressente da falta de oportunidades para seus filhos, que saem para estudar e fixam residência em outras localidades.
A questão econômica e social afeta a preservação das tradições da comunidade, como atesta a presidente da Associação de Moradores, Maria da Cruz, afirmando que este ano a festa foi mais animada e participativa, incluindo a presença de alunos do curso de História da Universidade Federal do Tocantins. Ela não descarta a possibilidade de implantar um projeto de turismo de base comunitária na localidade, mas afirma que precisa de orientação.
A cabeça e o coração da festa tem seus nomes. Altino da Silva Guimarães, 64, foi o festeiro deste ano. Filho da comunidade, revela que assumiu a organização por conta de uma graça recebida. “Tem que pagar a promessa”, revela ao lado da neta e rainha da festa, Keysllene Pereira de Carvalho, que dança a suça com o avô sob os aplausos dos presentes.
Mestre dos Congos do São João, Ornifo da Silva Guimarães, 60 anos, quase quatro décadas dedicadas ao congado, é o coração que pulsa na batida do pequeno tambor, puxando o cortejo por 3 km até o cemitério local. Túmulos muito antigos se misturam aos novos. O mais recente de um morador falecido em setembro, aos 51 anos. Enquanto é rezado o Terço, os ornamentos de cabeça e o tambor são depositados sobre o túmulo do último congo a falecer, Benigno Sena, enterrado em janeiro. No retorno ao povoado, a suça é dançada com alegria, tanto por adultos como pelas crianças.
Originalmente, os grupos de congada são formados somente por homens. Sendo considerado pelo professor da UFT, Eliseu Lira, o congo mais original de toda a região, que também inclui as cidades de Ipueiras e Silvanópolis, a presença de três mulheres no grupo quilombola não é uma quebra de tradição, mas uma necessidade de perpetuação. “As coisas vão se arranjando”, diz Ornifo, que anos atrás prometeu à sua mãe preservar o congado do Morro São João.
Na cidade
As plantações de soja e a movimentação de caminhões pela BR 010 revelam a chegada de novos ares na economia do município de Santa Rosa. Mas essa intensa movimentação não altera a disposição dos moradores locais em manter seus festejos.
“É fundamental preservar a cultura, a identidade do município”, garante o prefeito Ailton Parente Araújo, lembrando que todas as festas tradicionais estão no calendário cultural do município e recebem apoio. Revela ainda que os filhos de produtores rurais originários de outras regiões aos poucos são inseridos nos costumes locais. “Na Escolinha de Cultura temos oficinas de suça, congos, tambor”, revela sobre a disposição de agregar aqueles que chegam ao município.
No principal cemitério do município, outro grupo de congos faz seu cortejo. Os festeiros são Duvírgio Francisco Barbosa e Cleuza de Sena Ferreira. Ao contrário do que se poderia imaginar, a facilidade de acesso não atrai mais pessoas, sendo a maioria dos participantes desse cortejo familiares e amigos do rei e da rainha, ou mesmo dos congos.
Na liderança do grupo, segue o animado Silvio Rodrigues Soares, 62 anos. Também filho de Santa Rosa, expressa o compromisso da comunidade com a tradição, sem importar o volume de participantes, e comemora as oportunidades que surgem para apresentações em outras cidades. “Comecei a dançar aos 16 anos e vou morrer dançando”, conclui.