Por Inês N. Lourenço
Em 2018, o historiador Lucas Pedretti encontrou o dossier que fora preparado pela ditadura militar para prender Caetano Veloso no dia 27 de dezembro de 1968. A descoberta desse documento inédito, que fortaleceu a vontade que o músico brasileiro tinha de relançar Narciso em Férias – um dos capítulos da autobiografia Verdade Tropical, publicada em 1997 -, está na origem do filme homónimo assinado agora pela dupla Ricardo Calil e Renato Terra. “Paula Lavigne, mulher de Caetano Veloso e produtora, teve a ideia de fazer um documentário e convidou-nos para realizar”, conta Renato Terra.
Uma breve nota de abertura refere que, a 13 de dezembro de 1968, a ditadura militar brasileira decretou o Ato Institucional nº 5, que encerrou o Congresso e legitimou perseguições, prisões e torturas. Caetano seria uma das primeiras vítimas desse decreto, catorze dias depois. “Foi tirado de casa por agentes à paisana e ficou semanas sem saber o motivo da sua prisão. A família não tinha notícias dele. Foi um sequestro”, afirma o realizador.
No documentário, sentado numa cadeira contra o fundo de uma parede cinzenta ao ar livre, Caetano vai desfiando memórias, desde a madrugada em que a polícia lhe bateu à porta, em São Paulo, alegando que seria levado para interrogatório, aos dias no “xadrez” propriamente dito, em que procurava no rádio dos soldados a esperança de um tema musical como Hey Jude dos Beatles.
“Quando se ouvia aquele coro final repetido, com os acordes maiores, eu pensava que os portões se iam abrir, a luz ia ser vista de novo. Era um anúncio de coisas boas.” Este é um Caetano Veloso em jeito de confissão poética, supersticioso e emotivo, longe dos 26 anos que tinha na altura, quando conheceu a angústia da solitária e escreveu uma canção sobre a gargalhada da irmã mais nova, para afastar a dor.
Não é preciso muito mais do que uma cadeira quando se tem um narrador que fala como quem canta e que canta com a naturalidade de quem conversa. O espaço único do documentário funciona como um palco para a encenação das suas palavras, ambientando imagens precisas daquilo que descreve. “Filmámos num cinema abandonado na Cidade das Artes, uma obra faraónica no Rio de Janeiro. O tom cinza, os blocos de concreto, a imensidão da parede ajudaram a criar uma atmosfera que remete, um pouco poeticamente, para uma prisão. E foi fundamental para o objetivo do filme: Narciso em Férias pretende estimular uma experiência a partir do relato de Caetano. Não é só uma entrevista. Tudo ali é pensado para ser cinema.”
Tanto assim é que Renato Terra evoca referências fortes do documentarismo brasileiro – Eduardo Coutinho e João Moreira Salles – para explicar a importância do aspecto formal: “A pesquisa da forma ajudou-nos a realizar uma entrevista que potenciasse a narração de Caetano e criasse mecanismos para que ele entrasse numa espécie de fluxo de consciência. O filme foi concebido para que o espectador pudesse vivenciar as memórias dele, e a escolha do formato minimalista enfatiza cada palavra, gesto e silêncio.”
Depois há a música. Aquela que se sente no modo como Caetano relata episódios da cadeia, quase como quem está a escrever a letra de uma canção, e que se vivencia nos momentos em que ele passa os dedos pelas cordas do violão e canta, por exemplo, Hey Jude. O realizador sublinha também o facto de a música ser aqui entendida enquanto “arte contestadora dos costumes, provocadora de sentimentos e reflexões”. Afinal qual foi a causa da prisão de Caetano? A denúncia do seu tema Tropicália, com o argumento de que parodiava o hino nacional.
A certa altura, com a transcrição do seu interrogatório nas mãos, Caetano lê exaustivamente o relato absurdo daquela circunstância, entre a seriedade e o riso provocado por expressões usadas nesse texto antigo. Sim, o homem que escreveu o magnífico Terra, a partir de uma memória da prisão, é capaz de rir de uma situação que outrora o intimidou. E também aí reside o fascínio de o ouvir, agora sem medos e uma capacidade tremenda de formular pensamentos belos nas entrelinhas da tristeza.
Narciso em Férias foi rodado pouco antes da eleição de Jair Bolsonaro. “Estávamos a sentir-nos agredidos com a possibilidade da eleição de Bolsonaro, que elogiava torturadores e apresentava uma retórica militar agressiva, ultrapassada e cheia de ressentimento. Os caminhos percorridos para chegarmos às barbaridades de 1968 são muito parecidos com os caminhos que ele opta por percorrer.” No entanto, o realizador faz questão de ressalvar: “Narciso em Férias não é um filme denúncia. A sua ênfase é nas memórias de Caetano Veloso, a maneira poética, densa, dolorida, musical, corajosa e às vezes bem-humorada de lembrar os momentos mais difíceis da sua vida.”
Como refere o cantor brasileiro, citando o designer Rogério Duarte, “quando a gente é preso, é preso para sempre”. Eis o sentimento que atravessa este documentário.
*Fonte: Diário de Notícias/PT