Últimos momentos da vida de Belchior são retratados em livro

Por Chico Castro Jr.

Em uma noite de domingo de agosto de 2009, o programa Fantástico, da Rede Globo, entrou no ar com um furo de reportagem. Eles haviam localizado o cantor cearense Belchior escondido no Uruguai, dois anos após sumir, deixando para trás um monte de dívidas, família, escritório e até seu carro, estacionado em um shopping center. Apesar de praticamente ninguém na época sequer saber que ele andava sumido, o caso ganhou enorme proporção. Belchior morreu em 2017, mas o mistério permaneceu. Por que ele desapareceu? O que fez naqueles anos todos? O livro Viver é Melhor que Sonhar: Os Últimos Caminhos de Belchior, de Chris Fuscaldo e Marcelo Bortoloti, vem justamente ajudar a decifrar este enigma.

Marcelo Bortoloti e Crhis Fuscaldo em Sobral, terra natal de Belchior, diante de uma das muitas referências ao cantor na cidade. Foto: Acerco Marcelo Bortoloti e Crhis Fuscaldo/Divulgação.

 

Além deste livro, a dupla de jornalistas ainda atuou na pesquisa da série documental Procurando Belchior, produzida pela Urca Filmes com coprodução do Canal Brasil, com data de estreia ainda a ser divulgada. Para produzir o livro, Chris e Marcelo percorreram mais de dez mil quilômetros, indo dos refúgios uruguaios e gaúchos do cantor até sua terra natal, Sobral, no Ceará. Por conta disso, eles classificam o livro como sendo um road book, livro de estrada.

“Levamos algum tempo escrevendo e revisando Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior para colocar no livro tudo o que apuramos nesses anos de pesquisa. A gente não chama o sumiço de Belchior de ‘fuga’, como muitos jornalistas fizeram”, afirma Chris, em entrevista por e-mail.

“Como jornalistas e pesquisadores, fomos atrás de respostas e entendemos que se tratou de um exílio, talvez uma fuga interna, mas em um primeiro momento ele não estava fugindo de nada nem de ninguém, mas de suas próprias angústias e das obrigações de um dia a dia repetitivo e cansativo. Depois que a imprensa e, depois, a Justiça o perseguiram é que ele passou a ter que se esconder para não ser mais exposto do que já estava sendo”, acrescenta.

No prefácio, o professor e pesquisador Miguel Jost resume muito bem e em poucas palavras tanto a aventura de Belchior quanto o espírito da investigação de Chris e Marcelo: “O que temos aqui é um desejo por entender, por desvelar e por abrir para o grande público uma das histórias mais inusitadas vividas por um grande artista da nossa canção popular”, escreve.

Busca pelo ócio criativo

No livro, descobrimos que o grande pivô da aventura on the road de Belchior foi uma mulher, a artista plástica e produtora cultural Edna Assunção de Araújo, pseudônimo Edna Prometheu. Ao seu lado, Belchior percorreu diversas cidades do Rio Grande do Sul e do Uruguai, deixando atrás de si um rastro de dívidas (dos hotéis e pousadas em que se hospedavam) e interrogações.

Depois que a reportagem do Fantástico foi ao ar, Belchior (já na casa dos 60 anos) e Edna chegaram a dormir ao relento, embaixo de uma ponte em uma fria noite uruguaia, vagaram sem rumo à beira do desespero em Porto Alegre e pernoitaram em um edifício em obras. “É impossível medir o tamanho da culpa que Edna tem, e até mesmo se ela tem culpa nisso ou foi apenas a paixão que a moveu a acompanhar Belchior e fazer tudo o que ele mesmo queria fazer. No livro, a gente debate as possíveis causas, levantando inclusive essa possibilidade de haver algum problema psicológico, hipótese levantada por algumas fontes”, conta Chris.

Mesmo assim, o “pacto” firmado entre Belchior e Edna era tão forte que nada o fez voltar. Ela era como uma muralha em torno do artista – muralha que, aliás, ele mesmo ajudou a erguer. “O comportamento dele mostrou, nesses anos todos, que ele estava ótimo, feliz e aproveitando as vivências. Até em momentos de perrengue, ele parecia sempre estar se divertindo. Acredito que os ‘nãos’ que Edna dava aos pedidos para que ele cantasse eram acordados entre ela e ele, tanto que no mosteiro de Rio Pardinho, ele não hesitou em cantar para as freiras quando elas pediram”, relata.

Entre um perrengue e outro, Belchior e Edna viveram da bondade de estranhos, muitos deles fãs do cantor, que os abrigaram em suas próprias casas por alguns dias. Até que, diante da inércia do casal, os anfitriões se viam no desagradável dever de pedir que fossem embora – iniciando um novo ciclo na casa de outras boas almas. E ao longo de dez anos, entre 2007 e 2017, estas cenas se repetiram tantas e tantas vezes que o leitor acaba perdendo as contas, tantos foram os entra e sai do casal.

Para Chris, o que mais incomodou mesmo Belchior neste anos todos na estrada não foram os inúmeros perrengues por que passou. Foi a histeria em torno do seu paradeiro ocasionada após a fatídica reportagem do Fantástico. “Impactou bastante. Foi o momento em que ele mais se incomodou durante toda essa jornada. E, depois dessa exposição, ele foi muito julgado por quem estava aqui querendo saber sobre ele”, afirma a jornalista.

“Acho que, sem a obsessão que tomou o jornalismo por respostas sobre o paradeiro de Belchior, certamente a história teria sido outra. E quem sabe até ele teria voltado com muitos projetos na cabeça. Afinal, eu acredito que seu exílio tinha como objetivo a busca pelo ócio criativo”, acrescenta.

Personagem central deste drama, Edna sumiu – de novo! – pouco depois do enterro de Belchior. Até hoje não há notícias dela, nem mesmo para que ela viesse contar sua versão desta história toda.

“Existe uma visão estereotipada sobre Edna, que a coloca num lugar de mulher-problema, sempre disposta a criar confusão e, em última instância, até mesmo responsável por vários dos transtornos experimentados por Belchior, ou mesmo por suas escolhas. Não pensamos desta forma e, no livro, procuramos tirar um pouco este peso dos ombros dela. Edna foi um escudo para Belchior por todos estes anos e optou, até este momento, pelo silêncio, mantendo a coerência do comportamento do casal. Infelizmente não temos nenhuma notícia sobre ela”, conta Chris.

Além de trazer um bom perfil biográfico do lendário menestrel cearense, Viver é Melhor Que Sonhar relata os anos de sumiço do artista em um texto leve e objetivo, que se lê com interesse até o final, mesmo que já saibamos como a história termina.

Indispensável para os fãs e uma boa leitura complementar para quem já leu a biografia Belchior – Apenas um rapaz latino-americano (Todavia, 2017), do jornalista Jotabê Medeiros.

*Fonte: A Tarde

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