Crônica de viagem: Diário de um cruzeirista confinado (3)

Por Paulo Atzingen (ao mar, à altura de Campos de Goytacazes)*

O silêncio do mar  é cortado por cantos de gaivotas e pelo surfar do navio com sua quilha de ferro dividindo a água em leste e oeste. O cruzeirista confinado vai a bordo.
Cruzeirista confinado: Meu horizonte é o oriente e na frente dele, o continente mãe. Crédito: Daniel Lledó.

 

O fim da plataforma continental, chamada pelos pescadores de barranco, convida barcos de pesca, pescadores de elite e clandestinos a fisgar seus marlins e garoupas, peixes de águas profundas. Esse barranco está do lado da minha cabine, à leste. O azul do mar é mais profundo aqui e praticamente uniforme, em uma palavra: marinho. O navio segue em sua estrada salgada pela manhã e o cruzeirista confinado segue a bordo.

É tudo muito extenso e o infinito está à minha frente seja no formato de colossos de nuvem que se transformam  em nariz de cavalo, cogumelo atômico ou curva de mulher sarada, que logo fica obesa e o vento da atmosfera molda em seguida um touro bravo com dois cornos e três cabeças.  Meio apocalíptico,  meio amanhecer nos trópicos.

Não é preciso nem ter muita imaginação, lembrar do tempo de criança. Agora vejo um siri voador de mãos dadas com a cuca, do Sítio do Pica-pau Amarelo. O sol atrapalha e ao piscar já é outra figura.

É tudo muito extenso e o infinito está à minha frente seja no formato de colossos de nuvem que se transformam  em nariz de cavalo. Crédito: Daniel Lledó.
O vento da atmosfera molda em seguida um touro bravo com dois cornos e três cabeças.  Meio apocalíptico,  meio amanhecer nos trópicos Foto: Daniel Lledó.

 

Linha reta e horizonte

A linha reta se abraça com o que aprendemos chamar de horizonte e disso resulta na definição do inacabável, do (a) infinito (a). Isso tudo dá um beijo na possibilidade do eterno ao tocar o céu. Linha reta é usada para os cartógrafos fazerem seus mapas, e horizonte para as pessoas fazerem seus sonhos.

Meu horizonte é o oriente e na frente dele, o continente mãe. Quando olho para a linha reta nesta manhã, depois que as nuvens perdem o contraste do sol nascente penso que detrás daquela curva azul, haverá outras centenas de curvas azuis até que surgirá um ponto de terra que acostumamos chamar de África.

Milhas

O terceiro dia de confinamento é de mar sem fim. De Ilhéus a Búzios são 562 milhas náuticas o que correspondem a um pouco mais de 1 mil quilômetros de oceano.

Avistei três navios cargueiros, que iam em direção contrária, levando a carne, o trigo e o vinho pros europeus do leste e pros americanos do norte.

Hoje avistei três navios cargueiros, que iam em direção contrária, levando a carne, o trigo e o vinho pros europeus do leste e pros americanos do norte.  E como tenho tempo pra pensar, aí vai: o meu globo ocular prova para mim mesmo – e isso que escrevo é uma análise muito pessoal e você não precisa concordar – que a terra é redonda.

Somos circulares em gênese e a força centrifuga do universo criou astros e estrelas, quasares e planetas, sistemas solares com o design redondo, circular. Quando vejo o navio cargueiro que passa a dois mil metros de distância – pareado ao MSC Preziosa e em ângulo reto – vejo o real. Quando avisto depois de  algum tempo o mesmo cargueiro a 15 mil metros de distância percebo que se equilibra na curvatura da linha do horizonte, desce a ladeira da grande curva terrestre e o que vejo também é real… você pode dizer que isso é ilusão de ótica (no fundo você quer dizer que isso é alucinação de náufrago) e eu digo: é tudo redondo. Meu globo ocular que é esférico vê um naviozinho flutuando na bola da terra.

O casco, ao cortar a água em duas partes cria uma paleta de cores azuis, turquesa, cobalto, celeste, ultramarino, royal, anil…(foto tirada antes do confinamento)

 

Essas cores são alternadas em um fluxo contínuo que se escondem ou se expõem à luz. O navio quando passa, fatia em mil pedaços o azul-marinho e esse se subdivide em dezenas, centenas de outros tons. Isso, evidente,  enquanto existir a luz do dia. É inimaginável a escuridão abissal que fica nesse oceano depois que o navio passa e depois que os raios de sol vão embora.

Às 18hs surge a Lua, em sua versão cheia. Tenho mil coisas a falar sobre ela, mas deixo para outra oportunidade. Mais à noitinha avisto as luzes das plataformas de petróleo de Campos dos Goytacazes. Ali também há centenas de operários petroleiros confinados. Será que há serviço de quarto lá?

O meu acaba de trazer a programação do domingo e a principal é que chegaremos em Búzios às 7h. O cruzeirista confinado segue a bordo.

 

* O jornalista Paulo Atzingen é Diretor/Editor do Diário do Turismo, media partner do Portal Turismo Total, e viajou com seguro Europ Assistance

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