(ao mar, à altura de Campos de Goytacazes)*
O silêncio do mar é cortado por cantos de gaivotas e pelo surfar do navio com sua quilha de ferro dividindo a água em leste e oeste. O cruzeirista confinado vai a bordo.
O fim da plataforma continental, chamada pelos pescadores de barranco, convida barcos de pesca, pescadores de elite e clandestinos a fisgar seus marlins e garoupas, peixes de águas profundas. Esse barranco está do lado da minha cabine, à leste. O azul do mar é mais profundo aqui e praticamente uniforme, em uma palavra: marinho. O navio segue em sua estrada salgada pela manhã e o cruzeirista confinado segue a bordo.
É tudo muito extenso e o infinito está à minha frente seja no formato de colossos de nuvem que se transformam em nariz de cavalo, cogumelo atômico ou curva de mulher sarada, que logo fica obesa e o vento da atmosfera molda em seguida um touro bravo com dois cornos e três cabeças. Meio apocalíptico, meio amanhecer nos trópicos.
Não é preciso nem ter muita imaginação, lembrar do tempo de criança. Agora vejo um siri voador de mãos dadas com a cuca, do Sítio do Pica-pau Amarelo. O sol atrapalha e ao piscar já é outra figura.
Linha reta e horizonte
A linha reta se abraça com o que aprendemos chamar de horizonte e disso resulta na definição do inacabável, do (a) infinito (a). Isso tudo dá um beijo na possibilidade do eterno ao tocar o céu. Linha reta é usada para os cartógrafos fazerem seus mapas, e horizonte para as pessoas fazerem seus sonhos.
Meu horizonte é o oriente e na frente dele, o continente mãe. Quando olho para a linha reta nesta manhã, depois que as nuvens perdem o contraste do sol nascente penso que detrás daquela curva azul, haverá outras centenas de curvas azuis até que surgirá um ponto de terra que acostumamos chamar de África.
Milhas
O terceiro dia de confinamento é de mar sem fim. De Ilhéus a Búzios são 562 milhas náuticas o que correspondem a um pouco mais de 1 mil quilômetros de oceano.
Hoje avistei três navios cargueiros, que iam em direção contrária, levando a carne, o trigo e o vinho pros europeus do leste e pros americanos do norte. E como tenho tempo pra pensar, aí vai: o meu globo ocular prova para mim mesmo – e isso que escrevo é uma análise muito pessoal e você não precisa concordar – que a terra é redonda.
Somos circulares em gênese e a força centrifuga do universo criou astros e estrelas, quasares e planetas, sistemas solares com o design redondo, circular. Quando vejo o navio cargueiro que passa a dois mil metros de distância – pareado ao MSC Preziosa e em ângulo reto – vejo o real. Quando avisto depois de algum tempo o mesmo cargueiro a 15 mil metros de distância percebo que se equilibra na curvatura da linha do horizonte, desce a ladeira da grande curva terrestre e o que vejo também é real… você pode dizer que isso é ilusão de ótica (no fundo você quer dizer que isso é alucinação de náufrago) e eu digo: é tudo redondo. Meu globo ocular que é esférico vê um naviozinho flutuando na bola da terra.
Essas cores são alternadas em um fluxo contínuo que se escondem ou se expõem à luz. O navio quando passa, fatia em mil pedaços o azul-marinho e esse se subdivide em dezenas, centenas de outros tons. Isso, evidente, enquanto existir a luz do dia. É inimaginável a escuridão abissal que fica nesse oceano depois que o navio passa e depois que os raios de sol vão embora.
Às 18hs surge a Lua, em sua versão cheia. Tenho mil coisas a falar sobre ela, mas deixo para outra oportunidade. Mais à noitinha avisto as luzes das plataformas de petróleo de Campos dos Goytacazes. Ali também há centenas de operários petroleiros confinados. Será que há serviço de quarto lá?
O meu acaba de trazer a programação do domingo e a principal é que chegaremos em Búzios às 7h. O cruzeirista confinado segue a bordo.
* O jornalista Paulo Atzingen é Diretor/Editor do Diário do Turismo, media partner do Portal Turismo Total, e viajou com seguro Europ Assistance